DIÁRIO DO ISOLAMENTO
Por T. S. Marcon
SEXTA-FEIRA, 10 DE ABRIL,
VIGÉSIMO-QUARTO DIA
Nunca me senti tão esgualepado.
Estamos há quase um mês de quarentena. Os braços doem já a partir dos ombros, e os ombros doem como se eu saísse da cama com um Fusca nas costas todos os dias; dias e noites que, aliás, são atravessados em atividades de manutenção, limpeza e preparo de comida. Basicamente, só isso.
No começo, além do medo, houve a fantasia de que o isolamento nos traria o tempo – mantimento cada vez mais escasso – desejado para o consumo de livros, séries, filmes. Para a produção criativa, em velocidade adequada, de textos e projetos. Ah-ah-ah!
Logo veio a fase de certo enfado e erupções criativas de escape, como as cantorias na sacada. Nunca pensei que um apartamento de 55 m² habitado por um homem, uma mulher e um gato pudesse se comportar, em termos de demanda operacional, como um navio de cruzeiro com 5000 passageiros atracado num porto genovês.
Me sinto como um subalterno dentro da cozinha desse navio. Saio da cama, tento me desvencilhar do Fusca, preciso preparar o café. Mas antes preciso descobrir em qual das duas caixas de areia Zizek nos brindou com suas pequenas esculturas curvilíneas de excremento, ou as com as delicadas esferas irregulares de mijo, ou com as duas opções.
Sem falar na areia que ele deixa no chão. Zizek é um transgressor, um obsessivo. Depois de confeccionar suas pequenas obras-primas, esfrega freneticamente as patinhas na primeira superfície vertical que encontra pela frente. Muito aprendemos com ele.
Lavo bem as mãos depois do descarte das obras de arte zizekianas e penso no café da manhã. Hoje é minha vez de fazer. Cardápio: tapioca de ervilha e atum, mamão, suco de laranja, café com leite.
SÁBADO, 11 DE ABRIL,
VIGÉSIMO-QUINTO DIA
Defini junto com Brenda que sábado é um bom dia pra nos vermos e, assim, além de saciarmos um pouco da saudade, também levamos o Fredd passear. O bicho é simplesmente louco por mim. Mesmo antes de eu chegar a Brenda diz que ele começa a latir de forma alucinada, principalmente quando falam meu nome. Não é raro que ele uive ao ouvir o vocábulo “Tiago”.
Sempre deixo ele me lamber o rosto. Há algum perigo nessa prática por causa do vírus? Que loucura isso. Tenho fascínio por cães, ainda mais do que por gatos.
Não gosto de brincar com animais de estimação da forma como muitos fazem, mantendo uma postura mais elevada (literalmente, sem se abaixar) e usando palavras. Minha crença é que o ser mais evoluído no campo da linguagem (isso pode ser discutível) é quem deve descer os degraus para que o momento do brincar seja mais intenso.
O que eu faço? Me ajoelho, sento no chão ou fico de quatro e passo a rosnar, emitir grunhidos e latidos e ronronações em busca de alguma comunhão. Mesmo que aleatória. Gosto de esfregar meu rosto junto ao focinho deles, e deixar que me arranhem.
O que será que dizem meus latidos ou miados? Nunca saberemos. Talvez o que eu faça seja apenas uma fuga, medroso que sou, de ter de encarar a grande melancolia que sempre me vem à tona (acho que vou levar isso à terapia) ao contemplar o abismo comunicativo que nos separa.
Impossível não lembrar do meu cachorro de infância, uma fêmea chamada Hebe, da raça perdigueira. Meu pai gostava de caçar. A Hebe tinha o pêlo cor de areia e era muito dócil.
Minha mãe conta que, aos 5 ou 6 anos, num daqueles dias de infância, alguém da casa se descuidou e lá fui eu pelas ruas de Vacaria, onde morávamos na época, a flanar com a Hebe do meu lado. A tese da mãe é que eu não fui atropelado por causa da Hebe, que dava o timming certeiro pra atravessarmos as ruas desviando daqueles obstáculos fascinantes e perigosos.
Vou caminhando até a casa da Brenda. Sobre o basalto das calçadas, fenecem as folhas agora secas e desimportantes, elas que há pouco farfalhavam aos vetores do vento, na copa das árvores, como diminutos carburadores vegetais a nos insuflar o desejo de viver.
DOMINGO, 12 DE ABRIL,
VIGÉSIMO-PRIMEIRO DIA
Juliana prepara tapiocas com uma destreza infinitamente superior à minha. Hoje é de novo meu dia de fazer. Como sempre cozinho com muita fome, não sou paciente o bastante para esperar o tempo correto dos cozimentos, sem falar na organização da cozinha.
De modo que minhas tapiocas, quase todas, exibem imperfeições formais e furos devido à ação da água da ervilha ou do óleo do atum (que não tive saco de escorrer das embalagens). Mas, ao longo dessa reclusão, desenvolvi uma técnica: com a ajuda da “menestrina” (como diz minha mãe), manipulo pequenas porções de queijo derretido e assim obtenho uma espécie de cola reparadora, um graute estrutural, caso as tapiocas fossem elementos de concreto armado. É minha forma de corrigir esses pequenos, mas reveladores, problemas de execução em minhas obras tapioquísticas.
Enjoei um pouco de fazer churrascos todos os domingos, ainda mais porque, agora, é só pra duas pessoas. O que pesa muito, também, é a tarefa de ter de limpar uma grande grelha de modelo canaleta, em aço inox, que sempre uso. Excelente produto. O Chicão, velho amigo e ex-dono do Caminho Aventura, foi quem me vendeu.
Conversando com o Alemão, meu camarada e mestre na arte do churrasco, fico sabendo que ele não lava a grelha todas as vezes que assa carnes sobre ela. “Dá até um sabor especial aqueles defumados que se acumulam no tempo”, diz.
Sem churrasco, nosso café hoje é reforçado: duas tapiocas e um ovo frito pra mim, uma tapioca e um pão torrado com mumu pra Juliana. “Precisamos doar alguns quilos de alimento nos pontos de arrecadação”, falo antes de mastigar, combatendo um resquício de culpa ao ouvir o noticiário na TV.
Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal
E-mail: tsozomarcon@gmail.com
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