Este 14 de setembro de 2021 configura, em essência, uma verdadeira “data dantesca”. Isso porque este é o dia em que o mundo, em especial a Itália e as regiões do planeta influenciadas pela sua cultura (como a Serra Gaúcha, por exemplo), evocam os 700 anos da morte do poeta maior da língua italiana: Dante Alighieri (1265 – 1321).
Celebrações em torno da vida e da obra do escritor estão sendo desenvolvidas em diversos cantos do mundo, e nossos cantos de cá não ficam fora da programação. Como o site vem divulgando já há algum tempo, o escritor serrano José Clemente Pozenato dedicou-se a produzir uma tradução da obra máxima de Dante, “A Divina Comédia”, direto do italiano original para um português moderno, livre de arcaísmos e mais fácil de conversar com o leitor dos dias de hoje (confira matéria especial sobre esse trabalho AQUI).
Nesta terça-feira, dia 14, Pozenato estará em Porto Alegre autografando o primeiro volume de sua obra monumental, a tradução da Parte Um da “Divina Comédia” de Dante, “Inferno”, lançada pela Fundação Antonio Meneghetti. As outras duas partes, “Purgatório” e “Paraíso” deverão ser editadas nos próximos meses.
A sessão de autógrafos acontece no Foyer Nobre do Theatro São Pedro, das 18h às 19h45, antes do início de um espetáculo cênico e musical que terá lugar ali a partir das 20h, intitulado “A Paixão de Dante”. Confira detalhes sobre o espetáculo na matéria especial AQUI
Com o intuito de oferecer com exclusividade ao leitor do site uma degustação da nova tradução do livro, Pozenato libera o “Canto I” do “Inferno”, em uma versão em versos de sete sílabas, conhecido como “redondilha maior”. Segundo Pozenato, tratam-se de “versos populares, de trovador”.
Aqui, Dante se prepara para sua jornada pelas esferas espectrais em busca de sua amada Beatriz, sendo conduzido nesta etapa pelo poeta latino Virgílio. Confira:
DANTE EM REDONDILHA MAIOR
INFERNO – CANTO I
(Dante Alighieri, traduzido por José Clemente Pozenato)
No meio da minha vida
me vi numa selva escura,
sem saber qual a saída.
Descrever é coisa dura
essa selva crua e forte,
que deixa a mente insegura.
Ela é quase como a morte;
mas disso não falarei,
só do que eu vi por sorte.
Não sei contar como entrei:
o sono às vezes me apanha
e a estrada eu deixei.
Mas cheguei a uma montanha
no fim do vale que enchia
de medo a minha entranha,
e vi ao nascer do dia
a encosta com a luz clara
que nos mostra a melhor via.
O medo já se aquietara
no lago do coração
que tão triste me deixara.
Como um sem respiração
dum naufrágio ao se salvar
olha atrás com atenção,
assim, pronto a debandar,
me virei olhando o passo
que ninguém soube contar.
Aliviado do cansaço,
segui pela encosta ardida,
deixando dos pés o traço.
No começo da subida
vi uma onça bem vivaz
toda de malhas tingida;
com o seu olhar audaz
me barrava do destino,
e eu virei-me para trás.
O ar ficava cristalino
e o sol subia das estrelas
de quando o amor divino
criou tantas coisas belas.
Fiquei à espera, então,
junto às manchas amarelas,
em plena e doce estação.
Não tardou que medo desse
a vista de um leão;
parecia que viesse
sobre mim, boca esfaimada:
o ar fazia que tremesse.
E uma loba carregada
de gula em sua magreza,
e que muitos pôs no nada,
me jogou na incerteza
com o horror de sua vista,
e eu perdi minha firmeza.
Como alguém que uma conquista
vem depois toda perder
e no pranto se contrista,
a fera me fez perder
a paz, e me empurrava
para o sol nunca mais ver.
Morro abaixo eu despenhava
e vi alguém que achei enfermo,
de tão quieto que ele estava;
ao vê-lo naquele ermo,
“Miserere”, eu gritei,
“se não estás no teu termo”.
“Homem não sou, já passei:
os meus pais eram lombardos
e mantuanos, é o que sei.
De Júlio, nos dias tardos
nasci, e vivi sob Augusto
em meio a deuses bastardos.
Fui poeta do homem justo
que veio desde Troia,
depois que Ílion foi combusto.
Mas por que vens a esta escória?
por que não sobre o monte
princípio de toda glória?”.
“Então és Virgílio, a fonte
de onde o rio do verbo parte?
- perguntei, baixada a fronte -.
Ó dos poetas estandarte,
valha-me o longo amor
com que li a tua arte.
És meu mestre e meu autor,
onde o estilo fui buscar
que me dá fama e louvor.
A fera me fez parar:
livra-me, sábio famoso,
que eu não paro de pulsar”
“Sai então, vai cauteloso
- falou ao me ver chorando –,
este lugar é pavoroso.
A besta, que estás odiando,
não deixa passar na trilha,
fica até mesmo matando.
É bem ruim essa matilha,
sua fome não arrefece:
come e de fome ainda rilha
Com outras feras parece,
que vão vir, até que o Cão
matará a que merece.
Esse não terá mansão,
mas fé e sabedoria,
e unirá toda a nação.
Dará à Itália harmonia
por Euríalo e Camila,
Turno e Liso em agonia.
Caçará a besta na vila
até a jogar no inferno,
onde a cobiça faz fila.
Peço de modo fraterno
que me deixes te guiar
a um lugar que é eterno.
Gemidos vais escutar
e verás antigos entes
outra morte desejar;
verás também uns contentes
no fogo, esperando ir
junto das felizes gentes.
Podes até o céu subir
se não fores muito insano,
mas da porta eu vou partir:
o Rei que é lá soberano,
por eu ser fora da lei,
não me aceita em seu arcano.
Em toda a parte ele é Rei,
seu trono está onde eu digo:
feliz quem é de sua grei!”.
E eu: “Poeta, vou contigo
até O que não conheceste,
quero sair deste jazigo;
leva-me aonde disseste,
a porta eu quero ver bem
e todos que descreveste”.
Moveu-se, e eu também.