DIÁRIO DO ISOLAMENTO
Por T. S. Marcon
Quarta-feira, dia 01
Enquanto a pandemia imprime números cada vez mais assustadores na Europa, por aqui tratamos de nos organizar contaminados por uma certa banda de jazz tupiniquim chamada Os Reis do Improviso.
Há o acolhimento das orientações de médicos e autoridades de saúde, claro, mas muitos desdenham de tudo; é a fome de originalidade amplificada pela rede, narcisos em busca de lacração, o vírus foi criado pelos chineses pra salvarem sua economia, dizem, talvez ancorados instintivamente num discurso irresponsável e perigoso que vem de Brasília.
Mas a banca paga e recebe: a web traz informações úteis, e ferramentas como o whats – que criaram uma forma inédita de organização micropulverizada, solidariamente local e imediata – podem ser decisivas em situações como essa. Sem falar nos memes, fundamentais no alívio momentâneo do medo. Ainda estava trabalhando quando a obrigação de colocar o dedo no relógio-ponto foi derrubada por uma ordem de serviço do prefeito. Houve alívio.
O pequeno buraco óptico que lê nossas impressões digitais poderia se tornar um terrível foco de disseminação do vírus, pois há quem esqueça do álcool gel depois do ato. O prefeito também decretou o fechamento de academias, clubes e casas noturnas.
A prefeitura funcionará nos próximos 15 dias com escalas de 50% nas equipes de trabalho na maioria dos setores, de modo que a população não fique desassistida, informou nosso diretor. No restante do tempo trabalharemos em casa.
Salvei arquivos no pendrive, peguei minhas botas e o capacete e fui embora. Nas noites de quarta sempre busco a Brenda pra ficar um pouco na minha casa. Mantive as recomendações de distância e higiene, mas não mudei a rotina com a filha.
Quinta-feira, dia 02
Juliana suspendeu as idas ao consultório e passou a atender a partir de casa. Agora somos um arquiteto e uma psicóloga em regime de home office. Tudo ainda contém certo entusiasmo. O desconhecido atemoriza, mas é excitante.
Juliana fez uma pilha com vários livros sobre a cômoda do quarto, e ali apoiou o celular pra fazer as chamadas de vídeo com os pacientes. Nosso armário se transformou no discreto fundo branco necessário ao caráter de profissionalismo requerido na empreitada.
Durante essas conversas me isolo no quarto da Brenda, que é também o quarto do computador. Um isolamento dentro do isolamento. Aí sintonizo em bom volume a UCS FM, (ou a Jazzradio, ou a Rockradio) e mergulho no universo infinito do Autocad. E no da escrita. Lá fora o sol ilumina as fachadas das casas e das empresas do bairro, e me traz de volta o verão de 90 ou 91, quando, adolescente, flanava com minha Caloi Aluminum até Santa Justina. Nas refeições, ou nos intervalos de atendimento da Juliana, ligamos a TV.
Os canais anunciam novas medidas de contenção ao vírus. Cresce o número de mortos. Na Itália, caixões empilhados, Veneza vazia. No subsolo de nossas consciências aparece a ponta de um remorso. Deveríamos ter ido à piscina no sábado passado? Será que lavei adequadamente as mãos ao voltar do super? Ali comprei uma peça de fraldinha que deveria assar na grelha junto com legumes, um jantar digno de refugiados urbanos, pensei, mas quando veio a noite o desejo evaporou.
Pelo whats converso com meus pais, com minha filha, com minhas irmãs. Repasso informações, memes, dou dicas de livros e filmes nos grupos de amigos. Tenho medo que esse modo de convívio asséptico e precário se torne a única janela para paisagens sentimentais dos seres humanos que me são próximos. E que assim ficam ainda mais distantes.
Sexta-feira, dia 03
Com o isolamento, nossos horários romperam convenções. À meia-noite fiz pipoca. Selecionamos no streaming o filme A Caça, do dinamarquês Thomas Vinterberg, da turma do Lars Von Trier. Que petardo.
Tudo começa bem para o protagonista, nos afeiçoamos a ele, a câmera percorre seu cotidiano com intimidade – ele é professor do jardim de infância de um pequeno vilarejo – mas aos poucos a vida do cara vai desmoronando. E a gente vai junto. Nossa condição presente, entretanto, causou um efeito curioso: todas as cenas com mais de 3 pessoas conversando de perto, ou reuniões de amigos bebendo cervejas escuras e crianças na escolinha, subindo no colo de adultos e trocando beijos e abraços, me pareceram inverossímeis.
Zizek, estranhando nossa presença ininterrupta em casa, ronronava repetidamente, e se deliciava ao arranhar o tubo revestido de sisal. Qualquer sintoma de um sintoma agora gera preocupação. Um mínimo pulsar involuntário mais agudo na garganta pode ser o início do calvário, a diferença entre estar saudável ou contaminado.
Olhei para a estante da sala abarrotada de livros. São nossos mantimentos, disse à Juliana. À tarde veio outro decreto do prefeito, dessa vez determinando o fechamento dos bancos, das indústrias, do comércio. A sensação de irrealidade se tornou cada vez maior. A de senso histórico também.
Pensei na Brenda, nos meus pais. Senti um pulsar involuntário mais agudo na garganta. A cidade foi se acalmando e, como um animal ferido, perdia força e ânimo. Desci pra levar o lixo. No crepúsculo as ruas do bairro, semidesertas, pareciam cenários de algum filme do Tarkovski.
Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal