DIÁRIO DO ISOLAMENTO
Por T. S. Marcon
SEGUNDA-FEIRA, 13 DE ABRIL,
VIGÉSIMO-SÉTIMO DIA
Uma singela canção do The Doors se instalou no meu cérebro. Strange Days:
Strange days have found us
Strange days have tracked us down
They're going to destroy
Our casual joys.
We shall go on playing
Or find a new town.
Yeah!*
Que histórias contaremos a nossos futuros filhos ou netos sobre esses dias?
“Houve um tempo em que não se podia sair de casa ou visitar ninguém porque nas ruas, no contato com outras pessoas, existia o risco de contaminação por um bichinho invisível e perigoso chamado (nome do bosta) vírus.”
“Conta-mina-ssão é quando a genti pega doensa?”
“Isso. De certa forma, sim”. É quando ficamos fracos por causa de um bichinho invisível e perigoso que entra no nosso corpo.”
“Mas daí não é só tomá remédiu?”
“Sim, mas pra esse bichinho do (nome do bosta) vírus ainda não tinham achado o remédio.”
“Mas agora tem, né?”
“Sim, ainda bem que agora tem vacina. Já se toma ela quando ainda somos bebês”.
“Eu acho que eu vi um (nome do bosta) vírus lá embaixo chupando bico!”
TERÇA, 14 DE ABRIL,
VIGÉSIMO-OITAVO DIA
Hoje começa o pagamento da ajuda emergencial do governo. 600 pilas. Há algumas semanas o ministro da cidadania vinha adiando o anúncio do calendário de pagamento.
Os jornais ressaltam as imagens de pessoas acampadas nas filas. Alguns até preparavam pequenas churrasqueiras para serem preenchidas de carvão na hora do almoço. E o vírus ali, indiferente aos desejos humanos, flutuando entre respirações, invisível como uma gentileza nefasta, um aceno para a loteria da infecção.
Meus conhecimentos de economia são discutíveis, mas uma coisa sempre me pareceu clara: a saída menos tortuosa pra enfrentarmos os impactos do vírus na economia é imprimir moeda. Linhas de crédito a juro baixíssimo, ou até zero, a pequenas e médias empresas. Auxílios aos cidadãos, Injeção de liquidez no mercado, como dizem, tecnicamente, os economistas. “Ah, mas vai gerar inflação!”. Aí entraria o papel do Banco Central, com instrumentos de controle de preços, e uma atuação forte do governo, com políticas públicas de redistribuição de renda e geração de empregos.
Uma manobra arriscada, é verdade. Mas nas guerras, às vezes é preciso arriscar.
QUARTA, 15 DE ABRIL,
VIGÉSIMO-NONO DIA
Acordo de um sonho terrível: estou caminhando numa praça, ou num parque (o cenário, borrado, me era indefinido; lembro apenas das pedras dos paralelepípedos de basalto) e, súbito, uma legião de funcionários da saúde pública que (mais pareciam astronautas) irrompe do nada e começa a fumegar todo meu corpo como seu tivesse desembarcado de Chernobyl em 1986. Suas vozes são abafadas, não consigo entender o que dizem, mas o tom é incisivo, brutal. Eles se aproximam tanto que acabam me conduzindo com suas máquinas e fumaças, já não vejo onde piso, a tosse é irrecusável, meus olhos lacrimejam com ardência e, quando caio num tropeço, ouço o bater de uma pesada porta metálica.
Estou dentro de uma masmorra.
QUINTA, 16 DE ABRIL,
TRIGÉSIMO DIA
Nos dias em que estou isolado em casa, minha alimentação básica consiste em tapiocas. É uma iguaria excelente, saudável, leve, isenta de carboidratos, se preparada com os devidos ingredientes. Não quero aqui contar vantagem, mas cheguei a tamanho grau de precisão técnica no preparo que desenvolvi uma espécie de síntese sobre essa arte:
Decálogo do perfeito tapioquista:
Crê num mestre – Rita Lobo, Claude Troisgros, a Ju, Felipe Bronze, as gurias do café da Câmara de Vereadores – como na própria divindade.
Crê que tua arte é o topo de uma cascata de camarões inacessível. Não sonhas dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem derramar nenhum grão de tapioca no fogão.
Resiste quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da personalidade é um longo pedaço de queijo provolone: fugidio, vagaroso, resiliente.
Se não tiveres a massa de tapioca pronta, nutre um polvilho seco, mas não creias na tua capacidade para o triunfo, e sim no ardor da maior boca do fogão a gás.
Não começas a construir a tapioca sem saber, desde o primeiro farelo, aonde vais. Numa tapioca bem feita, as três primeiras mordidas têm quase a mesma importância das três últimas.
Se queres fazer com exatidão uma tapioca de queijo muzzarela, atum sólido ao óleo e azeitonas pretas, não há na arte culinária dos homens mais ingredientes do que estes para fazê-la. Uma vez senhor de teus ingredientes, não te preocupa em avaliar se são ácidos ou adstringentes.
Não tempera sem necessidade, pois são inúteis os cheirinhos coloridos que venhas a pendurar num ingrediente débil. Se colocas a quantidade precisa, o ingrediente, sozinho, terá um olor incomparável. Mas será preciso descobri-la.
Toma teus sabores pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o prato que traçaste. Não te distrai causando as impressões que eles não podem causar ou o que não lhes alcança. Não abusa do comensal. Uma tapioca é um xis depurado de excessos e muito mais saudável. Considera isso uma verdade absoluta, ainda que não o seja.
Não cozinha sob o império da emoção. Uma frigideira arremessada contra um crânio causa um impacto admirável. Deixa o “conje” no quarto. Deixa a emoção morrer, depois a revive com sal, azeite de oliva e molho shoyu. Chegarás assim, na arte, à metade do caminho.
Ao cozinhar, não pensa em teus amigos, todos corneteiros, nem na impressão que tua tapioca causará. Cozinha como se tua tapioca não tivesse sabor senão para o pequeno mundo de teus ingredientes e como se tu fosse um deles, pois somente assim obtém-se a vida numa tapioca. Só não exagera no fogo alto senão te queimarás.
*Os dias estranhos nos encontraram
Os dias estranhos nos rastrearam
Eles vão destruir
Nossas alegrias casuais
Nós temos que seguir em frente ou encontrar uma outra cidade
Sim!
Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal
tsozomarcon@gmail.com
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