Caxias do Sul 21/11/2024

Em favor da memória e do texto genial de Jotabê

Cronista mais popular do Rio Grande do Sul na década de 1950 hoje amarga injusto esquecimento, exceto nesta seção, que lhe rende justa homenagem
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 30/04/2020 às 16:43:14
Em favor da memória e do texto genial de Jotabê
Jotabê, a esposa e uma filha
Foto: DIVULGAÇÃO

Por Marcos Fernando Kirst

Inenarrável e impossível de ser posto em palavras o tamanho da injustiça que se abate sobre o nome, a biografia e a obra de um cronista esquecido. Ainda mais quando é o caso de o cronista em questão ter sido altamente popular, famoso e, o que é mais importante, lido em seu tempo, entre os seus. Passado o seu tempo e desaparecida boa parte dos seus, a memória do escritor se vai esvaindo nas brumas do impassível e desumano esquecimento, por razões que nem em sonho somos capazes de descobrir, e, mesmo que o descubramos, voltamos a esquecê-las logo ao acordar.

Incomodado sempre com os estragos causados pelo murchar da memória, faço questão de evocar aqui neste espaço um cronista que arremessava os narizes dos leitores às páginas dos jornais em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul durante a década de 1950, pautando as conversas e os risos da população naqueles tempos em que crônicas de jornal possuíam uma relevância que faria a alegria inimaginável dos escribas hodiernos. Trata-se do porto-alegrense João Bergmann, que assinava sob o pseudônimo “Jotabê” os seus bem-humorados textos no “Correio do Povo” e na “Folha da Tarde”.

Dono de um humor refinado, irônico e voltado a retratar as nuances do cotidiano, era conhecido como “O cronista da cidade”. Declarava ser dono de um “estilo asfixiante” pelo fato de construir sentenças intermináveis, arrastadas ao infinito por meio de pontos, ponto-e-vírgulas, traços e todos os demais sinais gráficos capazes de estender o fôlego do leitor à exaustão máxima, o que muito o divertia, e a todos os seus leitores que conseguiam sobreviver aos marotos testes literários a que eram alegremente submetidos.

Foi jornalista, radialista e advogado. Mas foi como cronista que entrou para a história e, ipso facto, habilitou-se ao esquecimento. Formou-se na primeira turma de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 1954. Nasceu em 1922 e morreu prematuramente em 1960, aos 38 anos, de infarto do miocárdio. Deixou a esposa Bernardina Assis, quatro filhos e centenas de crônicas magistrais publicadas nos jornais, algumas delas reunidas postumamente em dois livros, um dos quais me foi apresentado lá por volta da década de 1980 por meu avô paterno, de quem herdei o encanto pelo gênio de Jotabê. Em sua homenagem (ao escritor e ao leitor que era meu avô), vai aqui uma de suas longas crônicas humoradas e asfixiantes (por excesso de boa literatura). Vale a pena dar um tempo, degustar devagar e chegar até o final:

NOVELA

Por João Bergmann (Jotabê)

Inúmeros críticos cinematográficos a quem submeti, modestamente, os screen-plays dos meus dois primeiros filmes nacionais, não foram capazes de esconder a surpresa diante do fato de ter eu podido fazer, assim de saída, uma coisa que os americanos levaram anos e anos fazendo. Um deles declarou, textualmente, que os meus filmes só eram comparáveis ao incomparável Radische Yuywzrvqspklmxesxch Srqthgflçbn, filme croata-esloveno que, como os meus, ainda não foi exibido no Brasil. Outro, foi ao ponto de classificar-me como autor claroescuramente precoce, iludido, por certo, com este meu natural bem cuidado e jovial que dá, aos circunstantes menos avisados, a impressão de estarem à frente de um simples garoto, em idade de bambolê. O que, no fundo, não passa de mera ilusão de ótica, mas ainda assim tão perfeita que nem os sinais de uma calvície com entradas pela frente e pelos fundos conseguem prejudicar, tanto mais que como todos sabem, um dos mais queridos meninos prodígios do cinema, o querido Pablito, de Marcelino, pão e vinho, também é Calvo.

Devo, entretanto, a bem da verdade, esclarecer que não alcancei aquelas culminâncias, logo no primeiro voo. Antes de abalançar-me à produção de enredos cinematográficos, produzi uma novela radiofônica, a qual só não chegou a ser lançada ao ar, por falta de patrocinador. No geral, os dirigentes das firmas procuradas eram para esse fim, não queriam assumir compromissos tão longos, alegando que não sabiam se os seus netos desejariam manter o programa e interromper, assim, no meio, uma novela de sucesso, como a minha, poderia criar um grave caso de comoção intestina.

O título que escolhi, modéstia à parte, é bastante sugestivo e capaz de provocar enorme sintonia: “Almas irmãs gêmeas nascidas no mesmo dia com a diferença de cinco minutos apenas” ou “Os grilhões de uma consciência agrilhoada”.

A história é simples, porém emocionante. Trata-se de dois irmãos que não sabem que são irmãos, pois viveram, sempre, em quartos separados e faziam refeições em horas diferentes, sem jamais terem descoberto o terrível segredo que cercava as suas origens.

Uma vez, graças à bisbilhotice de uma vizinha, quase que fica tudo esclarecido, estragando-se a novela, antes, mesmo, de começar. Felizmente, porém, a megera é fulminada no momento em que ia contar tudo a André: − Meu pobre André, como tens vivido na ilusão! Ao que André retruca: − Fale claro, D. Esmeralda. Eu tenho o direito de saber tudo, tudo, t-u-d-o, tudo! Pelo amor de Deus, D. Esmeralda. Fale por favor! Fa (soluça) le! Pelo que, D. Esmeralda, já com voz sumida de quem vai ter uma coisa daí a pouco, resolve abrir-se: “Não sei se deva, meu filho. O segredo não é só meu. Mas aquele que m’o confiou em seu leito de molas, já não mais existe. (Ofega, bem perto do microfone que deverá ser convenientemente desinfetado, logo após) André! Ó meu pobre André! És ir... (cai, vitimada por um mal súbito, cujo mal, um quintanista de medicina, chamado às pressas, informa ser nó nas tripas, pois a novela se passa antes da invenção do apêndice).

Vai daí que André e Maurício (o outro irmão que também não sabe que é irmão) apaixonam-se pela mesma moça, a loira e doce Margarida, a qual – vejam só a sutileza da trama – apaixona-se por André, acreditando que ele é o Maurício. Margarida, por seu turno, também tem uma irmã, a quem não vê há vários anos, porque foi dada como perdida durante o incêndio de um circo, mas, na verdade, fora recolhida pela mulher barbuda que a criou como um pai, ocultando-lhe, sempre, a história de sua vida. No circo, Martha, (é o seu nome verdadeiro, conforme assentamento constante a fls. 137 verso do livro 3-AB do Cartório de Registro de Nascimentos e Óbitos da Comarca) por uma dessas coincidências que nos fazem acreditar em inspirações sobrenaturais, passa a se chamar Margarida, o que, até hoje, me espanta, pois asseguro-vos que a mulher barbuda não conhecia a família de Martha, ignorando, completamente, o nome da irmã dela, não podendo, assim, ser intencional o uso daquele prenome.

Um dia, depois de muitas voltas pelo mundo, o circo retorna à cidade e anuncia a sua grande atração: “Margarida, a única mulher barbuda que não tem barbas, em números de arrepiar os cabelos”. Preços reduzidos.

Irá Margarida-Margarida ao circo para ver Margarida-Martha? E, se for, lá estarão, também, nas gerais, André e Maurício? E será que Margarida-Martha, durante o seu número do trapézio da morte não sentirá uma vertigem e cairá lá de cima?’ E André e Maurício, quando todo o mundo ficar sem saber o que fazer, não saltarão, ao mesmo tempo, para o picadeiro, a fim de socorrerem a jovem e bela moça? E não acabarão, a instâncias do Sr. Cordeiro (pai das Margaridas) levando-a para a casa dele, a fim de, ali, ser melhor atendida? E não será isso, afinal, o que proporcionará ao Autor a possibilidade de, 53 capítulos após, escrever uma das mais comoventes páginas do rádio brasileiro, quando o Sr. Cordeiro descobre que é pai de sua filha e esta, por sua vez, fica sabendo que é filha de seu pai, caindo, ambos, de joelhos, um à frente do outro, com mal disfarçada emoção: “Minha filha! Minha pobre filha!” – “Meu pai! Meu pobre pai!”?

Será.