Por Marcos Mantovani
Vender sorvete em Caxias do Sul é o capítulo atual. Bem antes, a saga teve um início. Se o início tivesse sido manchete de jornal, teríamos lido o seguinte: “Aos 10 anos, sozinho, com fé em Deus e sem ninguém o aguardando, menino baiano desembarca na rodoviária de São Paulo para tentar a vida”. Cabra-macho mirim. No ombro, a mala tão pequena quanto ele.
Mas Edmilson Nascimento do Santo não se intimidou. 10 anos recém-feitos. O plano consistia em sair da rodoviária paulistana, achar uma pensão barata e ir bater perna atrás de emprego. Saúde para isso ele tinha. E juventude. E confiança no presságio. Afinal, São Paulo sempre foi a terra da oportunidade. O menino também descobriria a seguir que, como bem diz a canção do músico Criolo, “não existe amor em SP”.
a Bahia, a consequência existencial
Edmilson nasceu na baiana Tucano, longe do mar. Como não havia praia, a felicidade surgia forte durante a feira, aos sábados, com muita verdura, artesanato e forrós ocasionais. Essa Bahia do interior gostava de se reunir embaixo das tendas de lona colorida. Aos 9 anos, sentado na sua mototáxi, Edmilson erguia o braço e oferecia o serviço.
O serviço um dia se complicou. O destino veio de frente e o menino sofreu uma queda da peste, como diziam. Teve início então a jornada da cura – as energias baianas ajudaram e Edmilson se recuperou. Mas houve uma consequência existencial. Do nada, o menino anunciou que havia decidido ir sozinho a São Paulo. “Vai não que você vai sofrer na vida”, o pai lhe disse, sem dizer alto o suficiente.
sem amor, com amor
10 anos de idade e a selva de pedra aos pés de Edmilson. “São Paulo é grande da peste, macho.” Após encontrar uma pensão, o menino achou também um emprego, no Brás. Ele conta que deixou o currículo numa lancheria e, coisa de minutos, já foi chamado. Mas, como a música de Criolo não se cansa de dizer, “não existe amor em SP”. E sem amor ficou difícil. Um ano depois, era hora de partir.
11 anos e de novo sozinho num ônibus. “Só chamei por Deus e fui.” Destino: Rio de Janeiro, por razões de sol, mar e sereias. Uma dessas sereias deu bola ao menino Edmilson, com direito a mãos dadas em Copacabana. Só que ele morava na Baixada Fluminense – talvez o motivo da briga sem volta. O fato importante foi que o currículo dele ganhou mais um ano e pouco de trabalho, vendendo rede no centro carioca, em parceria com um cabra paraibano gente boa demais.
Porto Alegre, Caxias mais alegre ainda
Aos 12 anos (quase 13), o menino chegou a POA de ônibus, mais uma vez sozinho – mas agora com economias e a malandra experiência. “Embora pequeno, ali eu já era veterano na vida.” Tanto que soube na hora onde encontrar morada. “Desci do ônibus e já piquei prum hotel ali perto.” Depois, de banho tomado, foi ao Atacadão do Chinês e comprou mil reais em mercadorias (cintos e carteiras), para revendê-las no centro por um preço lucrativo.
Não demorou nada para que o menino ouvisse falar da promissora Caxias do Sul, terra do trabalho sério. Ele chegou de ônibus à cidade, solitário como sempre – mas de cabra-macho mirim já havia passado a cabra-macho juvenil. Cada vez mais veterano na vida. E alegre por ter escolhido Caxias em definitivo, cidade do emprego e da confiança dos patrões. “Aqui, se o cabra gostar do cabra, ele dá valor, confia mesmo”, diz, com um sotaque que balança bonito as palavras – a boniteza da linguagem.
o sorvete, o ensinamento
Em Caxias, após vender carteiras e cintos na Praça Dante por mais de uma década, Edmilson resolveu trocar de carreira. Arriscou tudo. Reinventou-se. “Aprendi sozinho a ser maquinista na máquina de sorvete.” Hoje, aos 30 anos, os amigos o chamam de Velho Baiano – velho porque já passou mais de 2/3 da vida trabalhando. E amando, amor que agora tem a titularidade da caxiense Eliane. “Conheci e convidei pra dançar fandango, convite no ouvido dela.”
Quem sabe faz ao vivo, diz o chavão. Edmilson faz a vida ao vivo desde os 9 anos, sem que ninguém tenha ensinado a ele os caminhos. No fundo, é ele quem ensina algo sobre o Brasil, sobre o que significa ser gente em 2020: baianos não são as definições preconceituosas que existem por aí. Caso ainda haja dúvidas em relação a isso, é só abrir de novo o capítulo número 1 da saga. Vê-se um menino desacompanhado. Vê-se a idade de 10 anos. Vê-se São Paulo no horário de pico – o menino tendo que decidir (em solidão) qual será o primeiro passo.