As nuances do cotidiano entre as quatro paredes do lar nunca estiveram tão evidentes e presentes na vida dos cidadãos como nestes dias de isolamento social forçado pelas medidas de contenção ao avanço do coronavírus.
Cozinhar em casa passou a ser uma tarefa crucial para a sobrevivência de muita gente que, até então, sequer sonhava em se aventurar junto às panelas da cozinha, mal sabendo a diferença entre uma caçarola e uma frigideira, uma escumadeira e um martelinho de bater bifes, um maço de salsinha e uma folha de sálvia, uma pimenta-biquinho e um tomatinho-cereja, uma pitada de sal e um toque de pimenta-do-reino.
Refletindo sobre isso frente ao fogão, dia desses, lembrei desta crônica, que escrevi e publiquei no jornal Pioneiro, em agosto de 2013. Se não vem a calhar, pode vir a inspirar o seu jantar:
A NOITE DA SARDINHA
Por Marcos Fernando Kirst
“Tó, a janta hoje é apenas isso”, disse eu noite dessas, arremessando ao pratinho da esposa recém chegada do trabalho uma das duas unidades de sardinha que eu encontrara no interior da latinha que acabava de abrir. Eu estava exausto ao final daquele dia, o corpo moído, a mente esgotada, a alma flácida, o ânimo zerado. Em condições assim, sei por experiência própria, deve-se evitar botar-se a cozinhar. Corre-se o risco de o risoto sair murcho, os medalhões resultarem empedrados, a sopa mostrar-se turva, o caldo entornar, a lentilha flambar e a fome ficar crônica.
Sob essas condições anormais de temperatura e pressão, o melhor mesmo é partir para os enlatados, que oferecem solução rápida e fácil para uma demanda que, a bem da verdade, é básica e simples: saciar a fome. Minha esposa fitou desolada o magro pratinho adornado com aquela fatia gorducha e decapitada de peixinho em conserva e não falou nada, enquanto eu sentenciava: “Cada um faz como quer”. Virei as costas e pus-me a esmagar minha sardinha com o garfo, misturando na piscosa papa duas generosas colheradas de maionese e não demorei mais do que um minuto e meio para, sentado no sofá defronte à tevê, resolver aquilo tudo assistindo a um capítulo de “Saramandaia”.
A esposa, no entanto, seguia na cozinha, de onde me chegavam barulhos. “Mas que diabos está fazendo?”, pensei, lambendo o garfo ensardinhado. Logo surgiu ela, empunhando no prato um vistoso sanduíche, dentro do qual a antes solitária sardinha refestelava-se em meio a folhas de rúcula, pedacinhos de queijo gran padano picados, uma fatia de tomate, folhinhas decorativas de salsa, listras de catchup e mostarda, tudo aquilo prensado na sanduicheira, o que fazia exalar aquele aroma quentinho típico das gostosuras que estão prestes a nos acarinhar o estômago vazio.
Minha boca encheu-se de água, para a alegria do último naco de sardinha que nela ainda nadava. Acostumada aos meus manjares diários de final de jornada, minha esposa não sucumbiu à minha desinspiração culinária frente ao cansaço daquela noite e produziu para ela uma atração gastronômica decorrente da criatividade. “Cada um faz como quer”, disse ela, usando a boca para fazer três coisas ao mesmo tempo (habilidade tipicamente feminina): falar, dar a primeira mordida e abrir um risinho irônico.
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