Caxias do Sul 01/04/2025

Dentre as Brontë, Anne

Em conversa imaginária com a bruxa Befana, cronista troca confidências literárias sobre a obra de clássica e injustiçada escritora inglesa
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 20/03/2025 às 10:04:10
Dentre as Brontë, Anne
Um chá tipicamente inglês na companhia dos livros das talentosas irmãs britânicas do século XIX
Foto: Marilia Frosi Galvão

Por MARILIA FROSI GALVÃO

“Coração batendo cum força, vizinha? Acho que tá apaixonada!!!”

Hein??

Era o vendedor de morangos!!

Com meu melhor sorriso, respondi: “acho que sim!!!!”

É. Isso acontece seguidamente. Essa abstração. Passo pela rua, mas meus diálogos são internos, com meus fantasmas. Eu me pergunto e me respondo. Ahhh. Por isso, pago micos quando a Befana me assedia. Fico com ar sonhador, converso com ela, faço caretas e não vejo mais ninguém. É bem coisa “nossa”. Befana e eu. Ela, a bruxa, tem o atrevimento de me pegar desprevenida. Dá uns rasantes montada na vassoura desgastada e aponta para o cestinho vazio. Somente eu a vejo, deduzo pois, que o moço dos morangos tenha mexido comigo, porque... “ah, essa tá no mundo da Lua”.

Pois, tive certeza da proximidade de Befana ao esfregar a fuligem em minha camiseta branca. Lá vem ela. Aquela que adentra nas casas pelas chaminés – e deixa doces. Toda cinza – cabelos e roupas – mas com um sorriso tão encantador!! E, por conta desses assombros encadeados, digo, encantamentos – ora sou Marilia – ora sou a própria Befana – meu alter-ego. Temos um trato: os doces que ela costuma levar é para as crianças, e os livros e autores (que me enfeitiçam) são para os leitores. Hahammm!!

No Dia de Reis – 6/01/2025 – na Praia Paraíso –, nos deparamos pela primeira vez – ela e eu – à beira-mar, como narro no texto “Com Follet e Austen à beira-mar”, que foi ao “ar” nesta página, em janeiro. Desde então, considero-a próxima, íntima e leal. Befana é uma figura lendária do folclore italiano. Na Itália, ela é tão esperada quanto o Papai Noel por aqui. No Dia de Reis, ela deixa doces, pequenos presentes e guloseimas nas meias coloridas da lareira para as crianças comportadas durante o ano. Ou alho e carvão para as que não... Antes de sair, varre o piso, ahhh. Mas que velhinha sorridente!! Simpática. E como voa, montada na vassoura. Uma bruxa. E, nos re-conhecemos, ahah. Sou-estou meio bruxa como ela, só me falta a vassoura própria. Pego carona. Confio tanto nela. E vice-versa. Somos duas – únicas e múltiplas. Duas velhas senhoras – que trocam confidências, especialmente as literárias.

Assim, demos início às nossas “voanças” lá pelos confins da Inglaterra. Primeiramente no século XII – pela obra histórico-romanceada “Os Pilares da Terra” do escritor britânico Ken Follet. “Segundamente” – visitamos o século XVIII – pelos romances “Orgulho e Preconceito” e “Persuasão” – de Jane Austen – escritora inglesa.

Não obstante...

Befana!!! Ainda estamos na Inglaterra!! Que tal ficarmos por aqui mais um pouco? Sim, eu topo. Onde e em que tempo desta vez? Vê só – gostaria de esclarecer algumas dúvidas: por exemplo: por que algumas obras literárias escritas por mulheres na primeira metade do século XIX ainda (passados mais de duzentos anos) são objeto de estudos acadêmicos e jamais se esgotam em leituras e releituras? Bem, quais são as coordenadas, cara mia? Befa, estás vendo aquelas colinas onduladas e abertas lá embaixo? E o casarão de pedras ao lado daquele cemitério? O que há de atrativo em um casarão isolado – tão comum por esta parte do Condado de York? Lá moram as irmãs Charlotte, Emily e Anne. Ah, as Brontë!!! Por que não falou de uma vez? Vamos!!!! Será que elas fariam a gentileza de nos convidar para um chá e uma boa prosa? Brrrr!! Essas esvoaçantes massas de vapor outonal, ahh, me fazem um mal às articulações. Ai, que dor nas juntas!! Ajeita o xale nas minhas costas, por favor. E segura firme, vamos aterrissar – ou avassourar – hihihih – no orvalho, ainda congelado, na grama. Hummm, nem bem chegamos e já estás poetando... “esvoaçantes... orvalho congelado...” Ah, Befana, estás certa, esse é o espírito. As Brontë foram, antes de tudo, poetas.

Não obstante...

Por certo, meus leitores deleitaram-se com os romances “O Morro dos Ventos Uivantes” de Emily Brontë e “Jane Eyre” de Charlotte Brontë – ambos considerados clássicos da literatura mundial – publicados em meados do século XIX. O cinema valeu-se da riqueza dessas obras e produziu vários filmes.

Porém, passando a vassoura na biblioteca, posto que este “instrumento” nos dá poder – à Befana e a mim, passamos de espectadoras a interventoras, engajadas com a ficção trazida para a realidade, para a vida – eis que – deparamos com a irmã mais jovem das Brontë: Anne Brontë. A terceira. Como eu. Como disse meu cunhado. A terceira das três irmãs. Aquela que sai de debaixo das saias e desafia. Suja as mãos, porque coloca as mãos na vassoura. É um trabalho humilde em princípio, mas nesse exercício prático de cuidado, prepara o mundo a ser conquistado. Divagações (des)necessárias, pois o foco aqui é Anne – o surgimento de uma nova fonte a saciar nossa curiosidade. O impacto que ela causou e ainda assim, mesmo não sendo tão conhecida e famosa como Emily e Charlotte, ela ousou construir um caminho próprio – ousado.

Anne, Emily e Charlotte Brontë em quadro pintado em 1834

por Branwell Brontë, irmão das escritoras

.. e... assim sendo, precisamos falar sobre Anne e seu romance “A Senhora de Wildfell Hall” e o quanto é atual – no sentido de denunciar os abusos domésticos e psicológicos, violência contra a mulher, casamentos abusivos, excessos alcoólicos e funestas consequências. Publicado em 1848, sob um pseudônimo masculino obviamente – Acton Bell –, esgotado em seis semanas. Um sucesso fenomenal – ainda mais para a época. E recebeu críticas ferozes também. Pode ser considerado como um dos primeiros livros feministas. Apresenta um retrato fiel e cru da condição da mulher no século XIX.

Imagino que, se a morte não a tivesse buscado tão cedo, aos 29 anos, quanta literatura de qualidade ela teria produzido.

Não obstante...

Esconde a vassoura ali, Befana, naquele arbusto de mirtilos. Esta é a casa do pastor anglicano Patrick Brontë? O Presbitério? As gurias estão em casa? Ah, boa tarde, então. Com licença. Befana!!! Para de cochichar. Sim, estou vendo a sala. Os móveis rústicos, o aconchego da família unida. As estantes com livros ladeando a lareira. Shakespeare. Lorde Byron. Thackeray. George Eliot. E livros dos Brontë, seus nomes nas lombadas. O patriarca também publicou. A enorme mesa onde os Brontë passavam a maior parte do tempo, lendo, estudando, pintando. Discutindo a respeito de leituras de revistas e jornais... os óculos do pai, os manuscritos... Daqui desta casa, as irmãs passaram a maior parte de suas vidas – e escreveram seus famosos romances.

Não obstante...

Anne Brontë nasceu em 1820 e morreu em 1849. Poetisa e romancista. O primeiro livro foi um de poemas – juntamente com as irmãs – com pseudônimos masculinos. O segundo livro de Anne – “Agnes Grey” – é uma biografia romanceada em que a heroína é uma governanta, atribuições que Anne exerceu.

E “A Moradora de Wildfell Hall” foi o segundo romance de Anne. Ler este livro, por estes dias em que me recupero de uma queda, tem sido uma luz em meu espírito – mesmo aprofundada em uma sombria região em que o sol raramente aparece, entre as brumas, a umidade e os “ventos uivantes” – a magia não se perdeu, ora iluminada pela vela, ora pelo lampião, ora pelos “bruxuleios” do fogo da lareira...

Se meus leitores aguardam alguma sinopse ou dicas ou spoiler, não os darei. Aconselho com veemência: leiam o livro. Mas seria chato ler um romance “água com açúcar” escrito por uma mulher que viveu uma realidade tão restrita, no interior da Inglaterra em meados da era vitoriana? Nada disso – um dos melhores romances que já li. Polêmico. A história é construída em camadas. Há diversos narradores. Uma obra bem construída. Ficou claro para mim, Anne é tão talentosa quanto suas irmãs. Ela encontrou a própria voz.

Não obstante...

Por favor, Befana. Já vimos o ambiente interno. Despeçamo-nos e voemos para o alto. Quero ver e entender, se possível, esta região tão extensa, por onde as irmãs caminhavam, o que as urzes, as pedras, as colinas, os pequenos riachos e pontes, as taipas, as cabras, a solidão, as poucas árvores, as sebes, freixos, heras, urtigas... o que há nesse ambiente selvagem que as inspirou? Então vamos, Marilia. Lá de cima teremos outros pontos de vista, outras visões de mundo, como dizem, hehe. Fecha tua capa, o capuz e agarra bem firme o pau... da vassoura, hihihihi...

...é, realmente, uma paisagem selvagem. Dramática, digo eu. Respira fundo esse ar frio que vem das charnecas, que na verdade é um pântano alimentado por aquelas nascentes, estás vendo? Nesta imensidão, dá para ver os juncos – matagal de espinheiros. Gostando da minha aula, Marilia? Não, não diga nada, por enquanto. Só curte. Depois será a tua vez. Nas colinas, dá para visualizar as pastagens calcárias. Meu Deusssss!!! Fujam, ó, raposinhas vermelhas. Fujam dos caçadores. Coelhos e estorninhos, escondam-se!! Depressa. Abriguem-se nesse solo turfoso – nessa variedade de flora incrível... as pimpinelas dos pântanos, as prímulas olho de pássaro, o capim roxo, e, oh, orquídeas entre os espinheiros... Ah, Marilia, obrigada por me convidar para este voo...

...visto daqui, parece que o tempo parou... nas colinas lá embaixo, olha... há casas de fazenda do século XVIII... e armazenam há milhares de anos, milhares de anos, estou afirmando, a turfa oculta sob a urze florida. Ah, e aquelas colinas abertas entre os charcos serviram de cenário para os filmes – aqueles já citados por ti, das irmãs de Anne. Com este tour, essa alçada aos céus de Yorkshire – na Inglaterra, consegui te ajudar naquilo a que te propões, Marilia?

Te digo – simmmm – querida Befana. Escuta só... vamos falar sobre a Anne. Não direi, pobrezinha da Anne, embora tenha tido dó. Ela viveu em uma época repressora – penso que esse fato a tornou tão corajosa. Mesmo muito jovem, romântica, ela deu vazão ao que vivenciou pela dura realidade imposta e preconceituosa em relação à mulher. Foi destemida ao usar o talento literário para fazer contundentes críticas e denúncias à sociedade hipócrita de então. Ahhh, Befana. Lê o romance dela: “A Moradora de Wildfell Hall.” Tu vais entender o que Anne Brontë – digo Acton Bell – por ironia – sofreu pela censura ao “ contar completas verdades e não muitas e suaves bobagens”, como ela o afirma no prefácio da segunda edição, que não foi a público, porque Charlotte, a própria irmã, impediu que essa obra fosse republicada... É...

Eu a vejo erguendo as saias para pular sobre os charcos, para ir ao culto, para ouvir sermões – isso não pode – não pode aquilo – sufoca e sublima a sexualidade – cuida da casa – aprende a cozinhar – aguenta os maus-tratos de um marido perverso – não leia romances – eles são proibidos – vão despertar o desejo – isso é pecado – leia a Bíblia – o livro de orações – não sonhe em viajar – em estudar – trabalhe muito em casa – porque pela Lei a mulher é objeto de uso do marido – ele é o seu dono – até de seus pensamentos – se tiver alguma renda própria (obtida por ser governanta ou professora – tudo pertence ao marido – inclusive os filhos – se ousar escrever – que seja escondido – e nunca mostre a ninguém – aprender outras línguas – para quê – viajar – conhecer o mar – isso é sonho... Além do mais, penso que era – foi – muito intenso e dolorido sufocar vontades, desejos, pois um homem, fosse namorado, noivo, porque é da natureza humana as “fomes” – as “sedes” – os sentidos... comer, amar, e não só rezar. O que achas de tudo isso, Befana??

Penso que preciso de um tempo para refletir sobre tudo. Na realidade, constato que Anne Brontë foi injustiçada e que hoje há estudos nas Universidades que reconhecem, finalmente, o seu talento literário.

Befana, antes de retornarmos, vamos colher alguns mirtilos? É tempo de mirtilos... amoras... framboesas... cerejas...

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista. Tem dois livros publicados: "Fagulhas" e "Tudo é Momento".

(Foto: Severino Schiavo/Divulgação)