Por MARCOS FERNANDO KIRST
Logo nas primeiras páginas de sua obra máxima, “Divina Comédia”, no Canto II da Primeira Parte da seção “Inferno”, ao se preparar para a longa jornada literária (e espiritual) a que se via predestinado, o escritor italiano Dante Alighieri (1265 - 1321) invocava o poder inspirador das Musas para virem em seu auxílio. “Ó musas! Socorrei-me, divindade! Valei-me! Mente fiel, que encerraste tudo que vi, sê agora mais precisa que nunca!” (tradução de Fábio M. Alberti).
Nada mais estratégico do que invocar as Musas gregas para virem em socorro sempre quando se está diante de uma tarefa artística portentosa e desafiadora, condição que, com o passar dos séculos, justamente devido às qualidades portentosas da obra que as Musas ajudaram Dante a moldar, revestiu-se no adjetivo “dantesco”. Aqui em Caxias do Sul, desde o mês de julho deste ano da pandemia, o escritor José Clemente Pozenato se vê envolvido em uma tarefa literária nitidamente dantesca, na essência, no tamanho, na portentosidade e no foco: traduzir, diretamente do italiano original para o português, a “Divina Comédia”. Em as Musas seguindo a colaborar, ele prevê a conclusão da hercúlea, que dizer, dantesca tarefa lá por abril ou maio de 2021.
Bem a tempo e bem a calhar, por sinal (e não por acaso), de estar concluída a tradução para o ápice das festividades em torno do sétimo centenário do falecimento do máximo poeta italiano, ocorrido em 14 de setembro de 1321, aos 56 anos de idade. Desde setembro deste ano, a Itália já ingressou no período batizado como “Ano de Dante”, com celebrações diversas girando em torno da biografia, da obra e do legado do poeta que, juntamente com os conterrâneos Francesco Petrarca (1304 – 1374) e Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), carrega a responsabilidade por, através de suas obras, moldar a forma clássica da língua italiana.
Escritor José Clemente Pozenato enfrenta desafio dantesco
Ingressar pela densa (e às vezes espinhosa) floresta da tradução direta de poemas clássicos do original italiano para o português, no entanto, não configura exatamente um esporte radical cerebral novo para Pozenato. Alguns anos atrás, ele se dedicou à confecção da primeira tradução completa para o português do “Cancioneiro” de Petrarca, lançado em 2015 em edição bilíngue pela Ateliê Editorial. A satisfação pelo resultado obtido e a boa repercussão do projeto configuraram alguns dos elementos motivadores para empreender a nova façanha no âmbito da tradução, agora, dantesca.
Outro elemento motivador foi o incentivo advindo de seu amigo e também escritor renomado Armindo Trevisan, especialista na obra de Dante Alighieri. “Em conversas com o Trevisan, ele me dizia que faltava uma tradução em português da ´Comédia´ que fugisse do esquema das antigas traduções camonianas adjetivistas ou movidas pelo típico rebuscamento parnasiano, que descaracterizam e desconfiguram o espírito original do texto”, explica Pozenato. Neste trabalho, o escritor serrano embarca no mesmo tom que pautou a tradução de Petrarca, “respeitando o modo de fazer de sua época, mas sendo legível aos dias de hoje, palatável ao leitor moderno”.
O “Cancioneiro”, de Petrarca, conforme analisa o tradutor, foi construído por meio de uma poesia mais musical, “para ser ouvida”. Já na sua “Comédia”, Dante produz uma poesia de caráter mais narrativo, “para ser lida”. Pozenato conta que, ao mergulhar cada vez mais fundo no longo poema dantesco, foi percebendo que seus tradutores não respeitaram a forma e a essência da obra.
“Dante construiu um extenso poema narrativo, com uma estrutura semelhante a um moderno roteiro de filme”, analisa. Tanto é assim que o famoso pintor italiano Sandro Botticelli (1445 – 1510) dispendeu vários anos na produção de painéis que ilustram a saga, uma vez que ela induz a uma verdadeira narrativa visual. “E é preciso respeitar esse ponto de vista do autor, no processo da tradução, pois Dante desejava montar um espetáculo ao leitor”, explica Pozenato.
A tarefa vem ocupando com prioridade a agenda do autor de “O Quatrilho” e articulista deste site nos últimos cinco meses. “Cada verso a traduzir representa um desafio”, revela. No entanto, assegura que chegará a bom termo na empreitada, justamente por também ter invocado em seu auxílio a inspiração das Musas. “Todas elas, todas as nove”, assegura. E está certo, afinal, o babilônico desafio é dantesco por excelência.
A título de degustação e de comparação, confira a versão de Pozenato para o trecho de Invocação das Musas citado na abertura desta matéria:
“Ó musas, ó alto engenho, dai firmeza;
Ó mente que anotaste tudo o que eu via,
Vinde mostrar aqui vossa grandeza”.
CANCELADO ÓRBITA LITERÁRIA
DESTA SEGUNDA-FEIRA
DEVIDO À PANDEMIA
A 335ª edição do Órbita Literária, tradicional encontro de bate-papos literários que ocorre todas as segundas-feiras, em Caxias do Sul, teria como tema, nesta segunda-feira, dia 30 de novembro, o trabalho de Pozenato na tradução da “Divina Comédia”.
Sob o título “Para Ler Dante Alighieri na Nossa Língua”, o encontro, conduzido pelo próprio Pozenato, seria aberto a todos os interessados e gratuito, iniciando-se às 20h nas dependências do Café da Velha, localizado junto à Casa da Cultura Percy Vargas de Abreu e Lima (Rua Dr. Montaury, 1333, defronte justamente à Praça Dante, de onde o poeta imortal estará observando o desenrolar da conversa à distância, do alto do busto que adorna o logradouro).
No entanto, devido ao avanço da pandemia no Estado, por medida de precaução, a organização do Órbita decidiu cancelar o evento desta segunda-feira, ficando transferido para data a ser divulgada oportunamente.