Por Marcos Mantovani
Dame Ndiaye é do mundo. E por isso sabe se expressar em cinco idiomas: francês, inglês, espanhol, italiano e português. Sem contar o dialeto wolof, que é o titular em Dakar, a capital senegalesa, cidade onde Ndiaye nasceu e se criou. A infância em Dakar ofereceu a ele muito futebol e muito banho de mar. Era chute-passe e depois braçada-mergulho: a meninice que toda criança deveria ter. Só que Ndiaye cresceu, prestou atenção e viu que bola e mar sozinhos não fariam um homem.
O início da vida adulta foi difícil para ele no Senegal. Ainda mais porque os pais de Ndiaye morreram cedo. O pai era um motorista dedicado. A mãe, uma dona de casa que criou seis filhos – os cinco irmãos de Ndiaye continuam vivendo no Senegal, casados, todos envolvidos com o comércio. Então coube a ele o papel aventuroso de viajante, de entregador de notícias do mundo, de menino crescido cuja atração pelos mapas-múndi não terminaria tão cedo.
a África, a Europa
Ndiaye conta que já viajou por quase toda a África. Sem pegar avião. “É mais barato de ônibus”, ele diz, com calma, a língua portuguesa saindo fácil por trás da máscara protetora. Foram viagens exploratórias que lhe deram uma consciência mais afiada a respeito do continente africano, da negritude, das origens do homo sapiens. Na Costa do Marfim, por exemplo, resolveu alongar um pouco a sua estadia, vivendo no país durante três anos. “Eu gostava de lá.”
Mas a África ficou pequena para Ndiaye. E a Europa, essa sedutora, começou a se insinuar no imaginário. Insinuações que fizeram com que Ndiaye se experimentasse na Espanha, França e Itália. Ele fala sobre Nápoles, cidade do Vesúvio e da Camorra, cidade que reúne as maiores contradições italianas: dinheiro e lixo, arte e degradação, natureza linda e certa feiura de espírito. Como em todos os lugares pelos quais Ndiaye já havia passado, ele sabia que Nápoles seria só uma baldeação, parada temporária, porque o Brasil já havia se infiltrado em seus pensamentos itinerantes.
o Brasil, os pontos não turísticos
O Rio de Janeiro foi a largada de Ndiaye por aqui. Dividia um apartamento com amigos em Niterói. E ia todos os dias ao fervo de Copacabana e da Lapa, para vender os seus caprichados artefatos de madeira: esculturas de faces e silhuetas. Depois de incorporar o jeito carioca, ele alternou períodos em São Paulo e Curitiba, até se descobrir em Caxias do Sul, cidade dos imigrantes italianos, hoje dos imigrantes senegaleses. E haitianos. E venezuelanos.
Ndiaye nunca teve tempo extra para visitar pontos turísticos. Não foi ao morro do Cristo nem ao Pão de Açúcar. Não fez caminhadas preguiçosas pelo Minhocão paulistano nem pelo Edifício Copan. Não descobriu a curitibana Ópera de Arame. Mas, diferente de uma parcela enorme de brasileiros polarizados que evitam uns aos outros, Ndiaye conversou com muita gente, sempre olhando nos olhos, sempre intuindo que, mais do que os pontos turísticos, o que vale mesmo são as conexões entre seres, os pontos humanos.
o caxiense, o gaúcho
Aos 47 anos, Ndiaye está há três em Caxias – foi inclusive casado por um tempo com uma caxiense. Se por um lado essa união durou pouco, existe um outro tipo de união que já dura quinze anos para Ndiaye: seu filho, Basirou, que vive no Senegal. “Eu falo com ele todos os dias.” E narra para Basirou as caraterísticas da cidade, o Parque dos Macaquinhos, a Avenida Júlio, o Juventude e a SER Caxias.
Pelo celular, Ndiaye conta para Basirou também sobre o Fogo de Chão e o Clube do Gaúcho, locais que ele já frequentou, tentando até mesmo dar uns passinhos de dança regional. “Mas eu não sei nada do gaúcho, só conheço o churrasco, que é muito bom”, diz, sorri e fica meio encabulado, aquela encabulação de quem é humilde e bom de espírito, de quem, por conta da religião muçulmana, não bebe álcool e jamais desrespeita os outros.
o sonho, o destino
Ainda lá na infância em Dakar, entre chute-passe e braçada-mergulho, o sonho de Ndiaye era comprar uma casa para os pais, dar-lhes conforto. Não foi possível, devido à privação financeira e às mortes prematuras dos seus. Era como se, de repente, ao fim de mais um dia quente nas regiões periféricas de Dakar, o adolescente Ndiaye enfim percebesse que sonho por sonho não garantia nada, não assegurava nada.
Mas nem por isso ele deixou de visualizar objetivos novos para sua vida. “A gente nunca sabe o que vai acontecer”, diz. E confessa que seria bom se encontrasse outra companheira, uma pessoa com quem pudesse dividir os ricos e os pobres momentos, as confianças e as dúvidas, a idade e o tempo, alguém que segurasse firme a mão de Ndiaye e ouvisse com carinho as suas histórias sobre o mundo, o Senegal, o destino.