Nesses tempos de distanciamento social imposto pelas medidas de combate à disseminação do coronavírus, acabei sentindo nostalgia de uma crônica de minha própria autoria. Menos por megalomania (que, naturalmente, não pode e prudentemente nem deve ser descartada enquanto ingrediente motivacional) e mais por identificar nela, no cenário em que se desenrola, a evocação da saudade das atividades que podíamos desenvolver ao ar livre a qualquer momento, perto de gente, livres de máscaras.
A crônica foi publicada originalmente no jornal “Pioneiro”, de Caxias do Sul, em 12 de agosto de 2013.
UMA AUTODISPUTA
Por Marcos Fernando Kirst
Foi numas férias dessas em que veraneávamos em alguma prainha de nosso litoral gaúcho, quando decidimos passar o dia em um desses parques aquáticos repletos de piscinas, escorregadores, crianças molhadas, senhoras de maiôs cintilantes, quiosques de lanches, brinquedos e mosquitos. A esposa, com sua peculiar alma de sereia, migrava de piscina para piscina, experimentando a térmica, a coberta, a fria ao ar livre, a das crianças, a maior, a menor, a funda, a com ondas, a rasa...
Já eu, aquela coisa de sempre, ocupava-me prioritariamente em perseguir, obstinado, a trajetória da sombra por entre árvores, bancos e quiosques, nos quais pudesse ler de forma razoavelmente confortável os livros, jornais e revistas que levara junto, obviamente que determinado a sair daquele parque, ao final do dia, tão seco quanto entrara, tão alvo quanto ao pular da cama de manhã cedo. Mas tudo mudou quando deparamos com a pista de kart. “Oba, uma pista de kart! Sempre quis andar de kart, e não tem ninguém! Só nós! Vamos lá!”, gritei, tão adolescentemente e tão entusiasmado que a esposa não teve como me privar da realização daquele desejo.
Fomos lá. Compramos os tíquetes que davam direito a três voltas na pista, colocamos os capacetes e sentamos cada um em seu respectivo kart, já ligados e dispostos lado a lado na posição de largada. À nossa frente, em pé entre os dois bólidos, o funcionário do parque explicava as regras da disputa: “Vocês só podem sair quando eu disser ‘já’”... e foi ele dizer aquele “já” explicativo que minha esposa não teve dúvidas: meteu fundo o pé e arrancou na minha frente, me deixando ali, abobado, olhando para o funcionário e vendo ela vencer já a segunda curva, voando as loiras tranças. “Bom, agora vai”, disse-me ele, tão pasmo quanto eu. Aí arranquei.
Ultrapassá-la se transformou em questão de honra e consegui fazê-lo ainda na metade da segunda volta, em um lance bem ousado que outro dia chamo Reginaldo Leme para me ajudar a detalhar aos leitores. O fato é que, apesar da queimada que ela deu na largada, venci a prova, ora bolas, o que é que ela estava pensando. Ruim mesmo é que ela achou a brincadeira sem graça. Não percebeu que saiu antes do que devia e que minha ultrapassagem fora uma prova de superação e habilidade. Deu de ombros para aquilo tudo e retornou para uma das piscinas. Eu havia disputado sozinho...
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