Caxias do Sul 23/11/2024

Conto homenageia o poeta Mario Quintana

Neste 30 de julho, data dos 115 anos do nascimento do escritor, o site publica texto que evoca a figura de um dos grandes nomes da literatura do RS
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 30/07/2021 às 08:43:27
Conto homenageia o poeta Mario Quintana
Foto: DIVULGAÇÃO

Por Marcos Fernando Kirst

Se ainda estivesse fisicamente vivo, o poeta gaúcho Mario Quintana celebraria nesta sexta-feira, 30 de julho, seus 115 anos de nascimento.

Falecido em 1994 na longeva idade de 87 anos (veio à luz em 1906, em Alegrete), Quintana legou aos leitores e ao mundo a imortalidade de seu talento poético, possível de ser revisitado sempre que se abre um livro contendo seus textos, sempre que uma borboleta esvoaça ao redor no ar, sempre que uma criança sorri, sempre que a alma dedica frações de tempo para adoçar o existir com a leveza vital da Poesia, daquela feita com “P” maiúsculo, advinda do íntimo dos Poetas, aqueles com o “P” também maiúsculo, time no qual Quintana figurava como titular incontestável.

Para homenagear sua lembrança nesta data, publicamos um conto inédito de minha autoria, produzido há muitos anos e até então engavetado virtualmente em uma pasta no computador, à espera do momento adequado de vir à tona. Vem hoje, como presente ao grande e saudoso Poeta.

A pena do Figueira

Por Marcos Fernando Kirst

Não vêm ao caso as circunstâncias em que conheci o Figueira, jornalista da antiga, cujo nome verdadeiro eu me reservo o direito de preservar aqui. O fato é que fui brindado pelo destino com a graça de privar da amizade dele durante vários anos, fundamentada em colóquios rotineiros no mezanino de um café aconchegante e discreto, onde ele mantinha o privilégio de ter mesa cativa.

De minha parte, tinha consciência do privilégio que cabia a mim, de poder aprender escutando as suas histórias e de ter a oportunidade de apreciar a inteligência, o espírito e a sagacidade de uma espécie de cidadão que o mundo parece tornar cada vez mais escasso entre o número daqueles que hoje povoam nossas calçadas e mesas de cafés. Era um deleite ouvir o Figueira mergulhar no passado e pescar de lá acontecimentos pitorescos, muitas vezes fantasiados pelas tintas da imaginação que ele ainda mantinha fértil e ativa, aposentado somente para efeitos de recebimento de pensão e de primazia para impor suas vontades e opiniões sobre os que povoavam seu círculo.

Carregava, no entanto, uma mágoa profunda o Figueira, e fui uma das raras pessoas a quem ele se permitiu confidenciar o segredo. Uma mágoa não contra alguém ou derivada de alguma injustiça sofrida, como o que usualmente acomete gentes que chegam às idades avançadas e passam a descortinar os pesos que lhes pautaram capítulos da vida. Com o Figueira, era diferente: carregava ele uma mágoa própria, consequência de ato praticado por ele mesmo e absolutamente irremediável, pelos motivos que exponho a seguir, como que movido pela intenção de promover um perdão público ao Figueira, agora que ele já não senta mais à mesa privativa no mezanino do café e, quem sabe, esteja tendo a oportunidade de pedir ele próprio o perdão de que tanto parecia precisar, em pessoa, lá do outro lado dos pagos da existência.

Aconteceu em uma noite já alta de sexta-feira, lá pelos idos dos anos 60 do século passado, época em que o Figueira trabalhava como repórter na redação de um jornal de grande circulação, em Porto Alegre. A edição de sábado já estava fechada, os tipógrafos trabalhando a milhão nas oficinas e as rotativas em breve começariam a deitar as tintas das notícias nas páginas ainda virgens, com os assuntos que pautariam as conversas rio-grandenses no final de semana. Poucas pessoas ainda movimentavam a redação já semideserta, entre elas o Figueira, dedilhando em sua Remington os arremates de matéria especial que ganharia as páginas do jornal em algum dia da próxima semana, concluindo assim outra série de grandes reportagens com as quais vinha granjeando reconhecimento entre o público e os pares.

Terminava o Figueira de preencher uma lauda e recarregava imediatamente o carro da máquina de escrever com outra, devorando a última pilha daquelas folhas timbradas e pautadas, em papel pardo, que ainda restavam intactas por ali, ao fim de mais uma exaustiva semana de captação e divulgação de notícias. Era um raio ao escrever, o Figueira, quando estava inspirado, e o fio condutor da reportagem lhe iluminava os pensamentos. Não poderia deixar para amanhã, e despencava os dedos sobre as teclas em um esforço contínuo e ritmado, ecoando solitário o parir de seu texto entre as quatro paredes da redação que começava a adormecer.

Mesmo concentrado, os cantos dos olhos do Figueira detectaram o aparecer lento e tranquilo da figura do Mario Quintana, àquelas horas, na redação, colaborador assíduo e uma das estrelas da casa. O poeta veio reto na direção do Figueira, a essa altura, os dois personagens sendo os únicos a preencher o cenário da história, e colocou a mão e os olhos nas duas últimas laudas que jaziam na mesa do repórter, ao lado da máquina que fremia.

"Posso levar estas duas laudas, Figueira?", perguntou o poeta, indo direto ao assunto.

"De jeito nenhum! Preciso delas para terminar meu texto e o pessoal do industrial só trará um novo calhamaço de laudas amanhã de manhã, depois de rodada a edição", respondeu o Figueira, igualmente direto ao ponto.

Recado dado, restou ao Mario nenhuma outra coisa a fazer senão meter as mãos nos bolsos do casaco, dar meia-volta e sair pela porta por onde entrara instantes antes, sem dizer palavra.

O acontecido teria morrido em si próprio sem a menor relevância, não fosse o poder do remorso atrelado ao poder da imaginação do Figueira. Ele jamais soube precisar se o arrependimento bateu naquela mesma madrugada, deitado na cama em mais uma de suas noites de insônia, ou alguns anos depois da morte do poeta. Mas o fato é que bateu forte e não só acompanhou o Figueira nos anos de sua aposentadoria, como pautou de certa forma boa parte das atividades a que se dedicou nesse que foi seu último período de vida.

- Não é possível, Marcos, que eu tenha negado ao poeta as laudas das quais ele necessitava para libertar um novo poema que certamente naquela altura da noite lhe acossava o espírito! – dizia e repetia o Figueira, as vezes todas em que recordava o episódio na mesa do mezanino.

Com essa frase, o Figueira exprimia a imensidão de sua culpa, que, no entanto, não se resumia à reiteração da lamúria. Nos últimos anos de sua existência, o Figueira passou vasculhando, ou melhor, esquadrinhando a obra poética do Quintana, texto por texto, na busca pelas datas prováveis de elaboração de cada um deles. Virou um biógrafo literário apócrifo do poeta, na esperança de um dia identificar o poema que, naquela noite hoje longínqua na história, habitava a alma do escritor.

O Figueira não suportava a ideia de que poderia ter sido responsável pelo aborto de versos do Quintana. Cometera um pecado, o Figueira, sem intenção, sem dolo, mas com autoassumida culpa. “Pecadocídio culposo”, conforme dizia, cunhando mais um neologismo.

Acredito que exista uma metáfora de vida em algum canto aí nessa história, mas provenho da mesma caldeirada do Figueira nos tempos de juventude: sou bruto para as sensibilidades, e não a detecto. Mais do que essa crônica, uma coisa parece-me certa: a pena do Figueira valeria um poema.

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