Por Marília Frosi Galvão
Espectadora de tudo. Assim sou. Onde estiver. Por esses dias de verão, aspiro perfumes de liberdade e belezas, pareço sonâmbula, mas estou acordada, nalgum lugar da praia Paraíso, litoral norte do Rio Grande do Sul.
Raios de sol dardejam em minha pele. O mar e as gaivotas, os únicos sons que ouço. Absorta, em muda contemplação à beira-mar. As ondas jamais-iguais em contínuo marulhar. Nessa imensidão sou um pontinho. Olho para cima, para o azul do céu e para o amarelo do Sol, baixo o olhar para o azul do mar e o ouro da areia. Deixo meu pensar e meu sentir em voo livre nesta atmosfera plena de azul e de amarelo.
Ah, fosse eu pintora, precisaria ser muito rápida para raptar o instante captado. Pois, o mar apaga os rastros, a luz muda, a Terra gira. Dessa girândola de pensamentos pescados como peixes em uma rede, surgem analogias em minha mente, pois que o pensar não dá trégua ... A vida é feita de pequenos instantes, aparentemente banais, como parar, fotografar uma flor, um pôr de sol, observar o entorno, que muda incessantemente.
Esse culto ao instante – o intenso agora – retratado nas pinturas dos impressionistas e pós-impressionistas de forma tão intensa, me traz à lembrança aquele pintor que me intriga, me assombra, me surpreende a cada descoberta que faço sobre ele: um homem estranho e selvagem, alto, magro, cabelos e barba ruivos, olhos azuis, cachimbo na boca, malvestido com roupas manchadas de tinta, usa um chapéu de palha, uma bolsa com telas e pincéis no ombro e um cavalete às costas. Para onde ele vai, com esta expressão no rosto que me parece tão severa e triste?
Mas eu estava vendo o mar!!
Por que essas coisas exercem um fascínio tão profundo em mim? Mar, céu, sol, areia, gaivotas, noites estreladas, azuis e amarelos? Ah, deve ser porque sou muito visual, gosto de observar a realidade sob a minha perspectiva. Ah, fosse eu pintora ... gostaria de pintar um belo quadro desta praia, em instantes intensos. Como não possuo o talento das tintas, preciso fazer uma pintura com as palavras certas, as verdadeiras, para que, ao ajustá-las umas às outras expressem os sentimentos como Vincent Van Gogh, o meu adorável fantasma ruivo, o fez em rápidas pinceladas-pontilhadas-ondulantes-frenéticas com tintas vibrantes, em azuis, amarelos, vermelhos e verdes. Que pretensão!
Van Gogh, considerado o maior pintor holandês depois de Rembrandt. Permaneceu pobre e praticamente desconhecido. Um artista à beira dos caminhos, deslocado, incompreendido. Enquanto vivo, apesar de uma produção de mais de 2000 obras, dentre elas 860 quadros a óleo, vendeu apenas um. Atualmente, seus quadros valiosíssimos estão nos museus mais visitados do mundo. Pintor pós-impressionista, deixou um trabalho notável pela beleza, emoção e cor. Influenciou a continuidade da arte no século XX. Nasceu na Holanda em 1853 e morreu na França em 1890, aos 37 anos de idade.
“Uma luz que, por falta de palavra melhor, não posso denominá-la de outro modo, se não amarelo, amarelo de enxofre pálido, limão pálido, ouro. Que belo é o amarelo.” Dizia Vincent em suas cartas ao irmão Theo. “Estou me dedicando aos girassóis. Farei um conjunto que será, então, uma sinfonia de azul e amarelo. Trabalho nisso todas as manhãs, a partir do nascer do sol. Pois as flores murcham rapidamente e é questão de fazer tudo de uma vez.” Vincent Van Gogh produziu duas séries com girassóis, pinturas que se tornaram algumas das mais famosas obras dele, em sua feroz procura da verdade, no culto ao sol (Deus), à luz e à natureza.
O amarelo na arte de Van Gogh...
...e nos "girassóis" da praia Paraíso (Foto: Marilia Frosi Galvão)
Outro tema que o inspirou foi a noite estrelada. Saía à noite com velas em seu chapéu de palha para pintar o trânsito das estrelas no céu. Nessas obras, o céu é turbulento e agitado, reflexo de seu estado interior. Em sua vasta correspondência com o irmão, há frases expressas como: “Eu confesso não saber a razão, mas olhar as estrelas sempre me faz sonhar.” “Para mim parece, frequentemente – a noite é mais viva e ricamente colorida do que o dia.” E ainda : “Quando sinto uma terrível necessidade de religião, saio à noite para pintar estrelas.”
O Terraço da Café na Place du Forum, Arles, à Noite...
...e as cores da noite em Praia Paraíso (Foto: Marilia Frosi Galvão)
As pinturas, em maioria, eram dedicadas ao verão. Arles, no sul da França, às margens do rio Ródano o inspirou. Era perfeita. Gente simples. Vastos campos de girassóis, lavandas, trigo, oliveiras, flores. E havia ciprestes, que o fascinaram. Deu vida a essas árvores pintadas à distância – como se fossem quebra-ventos nos campos. “Eu tenho uma tela de ciprestes com algumas espigas de trigo, papoulas, um céu azul, que é como uma manta escocesa multicolorida encrostada como o Monticelli”. Pintou 15 quadros com ciprestes. Solitário, produziu muito neste tempo em que ali esteve, até a sua morte. Retratou em três telas o seu quarto, O Quarto de Van Gogh em Arles (onde morava na Casa Amarela) sendo este o mais famoso da história da arte.
Os ciprestes do pintor holandês...
...os ciprestes da praia Paraiso (Foto: Marilia Frasi Galvão)
Ele pintava o que via e o que sentia. E dizia: “Se você ama verdadeiramente a natureza, encontrará beleza por toda parte.”
Mas eu estava vendo o mar!!! Com Van Gogh!!!
Pensando bem...
Vincent, a partir desse momento, chamo-o de Vincent, apenas Vincent. Se, nos cem anos após seu nascimento, ou seja, em 1953, estivesse por aqui, na Praia Paraíso (que nome perfeito para este lugar), encontraria os mesmos elementos que o encantaram em Arles, região no sul da França, e testemunharia o nascimento de uma linda história, nascida de um sonho – de alguns caxienses da Família Granzotto:
“Vamos ‘construir’ uma praia?”. Assim, como tudo começa pelo sonhar, planejar e executar, na década de 50 adquiriram uma grande faixa de terras (ou areias?) na orla do litoral, a uns 20 quilômetros da Praia de Torres – RS. Edificaram um hotel, de grandes proporções, com quartos e apartamentos, refeitório, cozinha e salão para os hóspedes confraternizarem. Tudo isso no meio do nada, ou no meio de tudo, com mar, céu e sol e areias, cômoros de areias a perder de vista. Além do hotel, duas casas iguais, uma de cada lado.
Aos poucos, os amigos e os amigos dos amigos e a parentada construíram casas. Os primeiros foram os Stedile, os Biazus, os Bergamaschi, os Granzotto, obviamente, os Polesso, Zanandrea, Marcheto, ah, e os Geremia... E hoje os descendentes continuam a povoar, além de outras famílias. Na verdade, a turma de Paraíso pode ser considerada como uma grande família. Todos se conhecem, se chamam pelo nome.
Imagino que lembranças amoráveis todos que aqui veranearam tenham. Eternizadas, pois são revividas e contadas, entre risadas, trazendo de volta os momentos felizes. Instantes.
O Hotel foi demolido há anos, restou um enorme terreno vazio, onde, aos poucos, algumas casas de veraneio vão surgindo. No entanto, a egrégora desse aconchegante hotel ali se faz presente – não se dissipou esse conjunto de energias, sentimentos, anseios e emoções das pessoas que por ali estiveram, viveram e conviveram em inesquecíveis veraneios.
Nesta praia nomeada Paraíso, pertinho de Torres, Vincent estaria em casa. As cores vibrantes das flores, do céu e do mar, a luz intensa do sol e as noites transluminosas o deixariam inspirado a pintar como em Arles.
E por quê?
Ah, pois, não há campos de trigo, há uma extensa faixa de areias douradas, reluzem tanto ou mais que o ouro dos trigais ...
Os girassóis são raros, mas há uma infinidade de flores amarelas, plenas de luz...
O céu noturno repleto de estrelas, com a Lua tão clara. Nessas noites de céu limpo, olho muito para o céu. As estrelas parecem tão próximas. O brilho de cada uma me deixa absorta totalmente. Penso em Vincent, ele olhava para este mesmo céu e pintava – a série icônica das Noites Estreladas ...
E o céu revolto das Noites estreladas, eu o vejo refletido nas ondas encrespadas do mar agitado – ondas em um azul magnífico deste pedacinho de orla no Oceano Atlântico...
As oliveiras, não vi nenhuma – mas as palmeiras!!!! E ciprestes. Apaixonantes ciprestes – com forma incomum, fluidos, cujos galhos são como labaredas verdes que dançam com o vento...
As nuvens correm. Os colibris com suas pequenas asas zumbem entre as flores. Andorinhas, gaivotas, bem-te-vis, canários, curicacas, coaxar de sapos, corujas, um gambazinho, até um lagarto, que dá as caras na porta da cozinha de uma vizinha todas as manhãs, para ganhar um ovo.
Ah, nesse verão de 2022, aqui na Praia Paraíso...
Os dias têm sido azuis e amarelos no céu, no mar, no sol, nas flores. Também azuis profundos nas noites com amarelos claros na lua e nas estrelas. Na vida tudo azul – tudo bem – no convívio, tudo amarelo – alegria e risadas. Estando em Paraíso não há como não relembrar fatos engraçados do passado e dar muitas risadas.
Em breves pinceladas, intensas como alguns instantes, tenho lá minhas lembranças...
...aos dezenove anos de idade, conheci o mar, em Paraíso. Hoje, na maturidade, contabilizo em meu espírito ternas lembranças, posto que, desde esse tempo passado até o presente, raro foi o verão em que viajei para outros lugares.
...Lyna Braghirolli, tia-mãe do meu marido, desde os primórdios do hotel, era convidada especial do Seu Luiz Granzotto e do filho Clóvis Granzotto, que o administravam. As temporadas para ela eram oferecidas graciosamente. Tia Lyna, como professora de Educação Física e um espírito de liderança, retribuía e se responsabilizava pela diversão e alegria dos hóspedes.
Pela manhã, ela reunia a mulherada na praia e, com o apito, comandava as aulas de exercícios. E os bailes que ela organizava no salão do hotel, uau! A criatividade a mil, brincadeiras, a dança do balão, o Baile do Chapéu, com prêmios aos mais originais. Alguém se encarregava de convidar os veranistas das praias vizinhas e lá ia com o jipe, de praia em praia para o grande baile à noite. Muitas recordações estão contidas nos corações dos hóspedes e veranistas-moradores. Lembra-se que, em um dos bailes à fantasia, o Sr. Fedrizzi arrasou como um general romano cuja roupagem impressionante foi feita de papel higiênico.
...uma ocasião, lá pelo finalzinho da década de 1960, fomos de Kombi de Porto Alegre a Paraíso. Um calor insuportável. Deu até pra fritar um ovo no asfalto. Juro. Fizemos isso. Levamos muitas horas para chegar ao destino. Imaginem, não havia ainda a Free-way, nem a Estrada do Sol, nem em sonhos. Enfim, depois de sustos e emoções, inclusive desembarcar e empurrar a Kombi, lá chegamos. O motorista da Kombi era o Vitor, irmão mais velho do José Afonso, mais a tia Lyna, por certo, a Suzana, a prima Eneida, o Tio Zezé e tia Maria e outros familiares. Tipo, a família Buscapé. Ohmeudeus, se fosse descrever a bagagem!
Havia normas rígidas a serem respeitadas no hotel. Lembro que lá pelas 22h30min, o gerador de luz era desligado e nos dirigíamos aos quartos com velas. Após o almoço, na hora da sesta, nada de ruído naqueles corredores compridos, as portas dos quartos cerradas, o silêncio devia ser mantido até 15h. Pois, vai que, o tio Zezé, no final do corredor, enquanto a maioria dos hóspedes estava dormindo, abriu a porta do quarto, botou a cabeça pra fora gritou a plenos pulmões – Mariaaaaaa, vamo imbora daquiiiiiiiii!!!! E a tia Maria, no outro extremo do corredor – Cala a boca, Zezééééé !!! Ahah, foi um despertar geral.
Ah, que delícia de refeições. Só de recordar, a gente fica com água na boca. Tudo, mas tudo mesmo era gostoso demais – os bifes na chapa, as batatinhas, o milho, o pão, ah, e os sonhos para o café da tarde, hummmmmm, quentinhos, recheados com goiabada e polvilhados com açúcar e canela... ahhhhhhhhh!!!!!!!
Mas ainda estou vendo o mar...
...o sol declina, as sombras se alongam, meus fantasmas me visitam, sorriem para mim. Pareço sonâmbula, mas estou acordada. Com a saudade aflorada, volto à casa, com a beleza da praia assim revelada.
Um convite: “Imagens Habitadas” – Exposição e Arte com fotos da Praia Paraíso por antigos e novos moradores, na Associação Praia Paraíso até o final de fevereiro. Projeto criado e coordenado pela Professora e Artista Plástica – Pintora Maira Paludo.
P.S. = Os instantes pincelados por Vincent Van Gogh, pintor holandês, em sua vasta obra em pinturas de quadros, permitiram que a humanidade apreciasse a arte com um olhar para instantes eternizados.
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista
A autora desta crônica, aspirando inspirações na orla de Paraíso... (Foto: Marilia Frosi Galvão)
galvao.marilia@hotmail.com