Por MARCOS FERNANDO KIRST
Com quantas e com quais palavras se consegue sintetizar a biografia e a vida de um grande escritor, cujo principal aspecto da existência consistia justamente em tecer palavras? No caso de José Clemente Pozenato, que nos deixou nesta triste segunda-feira, 25 de novembro, um mês antes do Natal, talvez se possa arregimentar a palavra “generosidade” para cumprir a delicada missão.
Pozenato era generoso com a distribuição da cultura e da erudição que possuía, decorrentes do cultivo diário da inteligência e do espírito, ofício a que se dedicava desde menino, quando ainda andava de pés descalços pelo chão de sua São Francisco de Paula natal. Era generoso porque distribuía seu vasto conhecimento nas aulas que ministrava na faculdade, tornando-se professor inesquecível e saudoso para quem teve o privilégio de estar presente nas salas em que ser seu aluno, isso sim, era o presente. Era generoso porque compartilhava seu amor profundo pela literatura criando e escrevendo ficções e poesias de sua própria lavra, enriquecendo e ampliando o cenário literário local, regional e brasileiro, proporcionando prazer de ler a quem teve (e poderá seguir tendo) a regalia de ser seu leitor.
Era generoso porque dedicava-se a traduzir para o português os textos de escritores que admirava, como Dante Alighieri, Francesco Petrarca e William Shakespeare, desmistificando a aura de inacessibilidade que ronda os autores ditos clássicos, ajudando a aproximar esses textos dos leitores modernos, permitindo a estes descobrir e se maravilhar com a relevância e a atualidade que segue existindo nos escritos daqueles. Era generoso porque democratizava seu saber a quem se dispusesse a escutá-lo nas palestras, seminários, bate-papos, cursos, oficinas e entrevistas a cujos convites generosamente aceitava, atribulando sua própria agenda de compromissos, convicto de que o conhecimento adquirido e cultivado foi feito para ser compartilhado, e só assim atinge a plenitude e se justifica.
Era generoso porque recebia em sua casa não só os amigos e familiares que, naturalmente, devido às relações pessoais estabelecidas, privavam do acesso franqueado ao seu cotidiano e à sua intimidade, mas também os desconhecidos que buscavam saciar suas curiosidades sorvendo “in loco” e presencialmente a fonte de seu saber. Assim, estudantes, escritores, jornalistas, curiosos, leitores, fãs, sempre que possível, eram recebidos na sala de seu apartamento, decorado com livros e quadros, em tertúlias pautadas pelo desfilar de sua voz baixa e segura a pontuar fatos e feitos, sempre intermeados por eventuais “pérolas” espontâneas e bem-humoradas ofertadas a conta-gotas, compreendidas na medida das capacidades de seus interlocutores.
Generosidade assim não só define um grande escritor, mas, principalmente, expressa e desvenda o existir de um verdadeiro Mestre. Pozenato era um desses raros Mestres que temos o privilégio de conhecer e admirar ao longo de nossas existências, se tivermos sorte. Minha esposa, a jornalista Silvana Toazza, e eu, tivemos essa sorte. Quando lançamos nosso portal de notícias (www.silvanatoazza.com.br), em 13 de março de 2020, Pozenato não hesitou sequer por um instante em aceitar o convite que a ele fizemos, para ser um colaborador do veículo virtual, nele publicando semanalmente seus escritos e reflexões de inserção cultural (acesse, no final deste texto, a primeira e a última crônica por ele publicadas no site). Ele estava lá, na página de estreia do portal, integrando o grupo dos quatro primeiros articulistas que foram ao ar naquela data histórica. E também estava lá presencialmente, fazendo questão de comparecer ao coquetel de lançamento do novo veículo de comunicação da Serra Gaúcha, prestigiando o evento na companhia da esposa Kenia e da filha Ana. Afinal, o generoso não poupa generosidades.
A partir da esquerda, Kenia Pozenato, Silvana Toazza, Marcos Fernando Kirst, José Clemente Pozenato e Ana Pozenato, no lançamento do Portal, em março de 2020
(Foto: Berenice Stallivieri)
Devido a contingências arquitetadas pelo Destino, ainda antes disso, tornamo-nos amigos do casal Kenia e José Clemente Pozenato, sendo recebidos em seu lar em longas conversas regadas com o café preto e os palitinhos de queijo produzidos pela Kenia, que, muito mais do que “a esposa do Pozenato”, detém vasto currículo de protagonismo acadêmico e cultural à altura do marido. Ir à casa deles significava mergulhar de cabeça tardes adentro em aconchegantes, acolhedoras e luminosas palestras nas quais o tempo sofria aquela retração mágica que faz as horas parecerem segundos e passarem rápido demais sempre que vivenciamos uma experiência maravilhosa e transformadora, que não queremos encerrar. É o que acontece quando se está na presença de um Mestre generoso como José Clemente Pozenato.
Era o que acontecia, porque ele deixou de existir fisicamente entre nós desde a noite de 25 de novembro de 2024. Mas a Vida também sabe retribuir, e sabe ser generosa com a memória de um Mestre generoso, inclusive com quem teve a alegria de privar de sua essência, seja de perto ou de longe, conhecendo-o pessoalmente ou através dos frutos de suas obras. É por meio delas que a essência do Mestre generoso seguirá tocando e transformando as vidas de quem desejar dele se aproximar e dele sorver aquilo que ele seguirá não se negando a partilhar. A saudade e a lacuna deixadas por sua partida serão sabidamente incuráveis. O consolo da lembrança será suportado com a alegria de revisitar eternamente o vasto legado humano que ele construiu e deixou em cada linha que gerou. Generosa mesmo foi a Vida, em nos presentear com um José Clemente Pozenato a viver entre nós por 86 anos! Obrigado, Mestre Poze!
Sobre o falecimento do escritor, leia AQUI
Leia a primeira crônica de Pozenato no Portal, publicada em 13/3/2020, AQUI
Leia o último texto de Pozenato publicado no Portal, publicada em 24/10/2024, AQUI