Por Marilia Frosi Galvão
Será que eu morri? Pois percebo uma mudança sutil na atmosfera. Uma leveza. Uma frescura no ar. Nenhuma dor - nem muscular – nem nas articulações. Mente solta – sem preocupações. Nem lamentos.
Olho para trás, não vejo minhas pegadas na areia molhada. Ah, decerto pelas lambidas do mar. Tornei-me um ser etéreo? Tal como uma ninfa? Uma musa? Ou fada? Talvez, uma bruxa? Essas, já as protagonizei, vezes pouco, vezes muito, em passados diversos. Creio que o meu estado nesse momento caracterize uma Befana. A velhinha simpática lá da Itália que voa em uma vassoura desgastada e entra nas casas pelas chaminés, na madrugada do Dia de Reis, com doces para as crianças que se comportaram, e carvão e alhos para as que não.
Como sou moderna, hahahaha, minha modernice revela-se pelo conteúdo do cestinho: livros – ao invés de doces – encantamentos literários – para os leitores que se comportaram bem durante o ano - a cultivar os bons hábitos de leitura. Sim, sinto-me como aquela Befana que sorri o tempo todo e voa paralela ao horizonte. Alinhamento é a palavra. Porém, conservo os sinais vitais: o ar marinho com odor de peixe preenche meus pulmões. O coração ainda bate até quando parar. Ouço o som das ondas do mar. A água fria e o vento arrepiam minha pele. Não, não morri. Estou viva e plena. Hihihihihihi!!!!!!!
Assim sendo, nessa condição de ser (senhora de mim mesma) e ainda estar presente de forma física no Universo, penso que gosto da mulher que estou procurando me tornar - penso nos ciclos que atravessei. Nas temporadas de verão em que me reconectei comigo mesma – nas repetições. Nas ondas do mar. Nos dias e nas noites. Nas estações. Amanheceres e entardeceres. Nas voltas da Terra. Nas fases da Lua. Na vida. Na rotina do cotidiano. Idas e vindas. Perdas e ganhos... Nas leituras dos clássicos. No compartilhar reflexões com leitores queridos e atentos.
Assim, como um pontinho no imensurável Universo, não me sinto deslocada. Pois, abrigo em mim a história da Humanidade. As conquistas. As benesses. As dores. As guerras. O bom e o ruim do Homem. Se... em minha ínfima existência, há ciclos que se repetem – sou um mínimo que contém o Todo. E o Todo, registrado na História dos tempos e pela Literatura, me comprova que quase tudo se repete... Deixo as reticências para não encerrar a questão...
Enquanto isso,
Deposito meu cestinho de Befana na areia da praia. Ofereço três presentes para os meus leitores: “Os pilares da Terra”, do escritor Ken Follett; e duas obras de Jane Austen: “Orgulho e Preconceito” e “Persuasão”. As leituras deste verão de 2025.
Ken Follett é britânico - nasceu em 1949 no País de Gales. Ícone da literatura mundial. Inicialmente, era jornalista. Depois cursou Filosofia, mas prevaleceu o cultivo da Literatura como paixão. Apreciador de Shakespeare. As temáticas de suas obras abrangem as guerras – a espionagem e romances históricos. Já conhecia alguma parte de sua obra – “O Buraco da Agulha” – “A Chave de Rebeca” e outros que viraram filmes e séries cinematográficas. Porém, deixei-me seduzir completamente pela escrita dele na obra monumental – Os Pilares da Terra. Monumental não só pelas 941 páginas.
No entanto, pelo intrincado enredo – com personagens fascinantes interagindo em torno da construção de uma catedral gótica no século XII, na cidade fictícia Kingsbridge, com um painel de fatos históricos. Coisa de gênio. A expressão francesa: Je suis tombée amoureuse – define o meu sentir – tombei por amor – literalmente, por pura paixão pela escrita de Follett, que me fez refém das surpresas – do ritmo rápido – dos vilões tenebrosos – dos personagens tão “reais” – com defeitos e qualidades e... a natureza espontânea e inesperada do amor.
De forma vívida, olhando pelas janelas do tempo, transportei-me aos anos de 1123 a 1174 – uma época chamada pela História de Anarquia – caracterizada por conspirações, corrupção – violência e surgimento de uma nova ordem social e cultural. E como pano de fundo a herança do trono do Rei Henrique I, na Inglaterra. Captei o que acontecia em castelos, feiras, florestas e igrejas. A Igreja Católica tinha muito poder. E, como toda boa leitura toca em fatos que nos marcam e preenche terrenos vazios, não pude evitar a comparação com os dias atuais – as repetições. As perseguições. A opressão e exploração dos poderosos que subjugam os fracos e vivem do suor deles... aliás, em que momento da história da Humanidade isto não ocorreu?
Pois,
encostei a vassoura e “materializei-me” no século doze – senti na “carne” e na alma as dores e a falta de liberdade das mulheres. Proibidas de tudo – só deviam obedecer e eram alvo de estupros e outras maldades. Ao longo da história narrada por Follett, as pessoas sofriam algum tipo de tirania, direitos usurpados. E, óbvio, os que detinham o poder não queriam abrir mão dele... uma alegoria aos dias de hoje? Fatos que se repetem?
Em uma entrevista feita para um canal de TV – em 2023 –, Ken Follett tocou em uma palavra crucial: LIBERDADE !!! “A liberdade é difícil de conquistar e fácil de perder. Dramatizar essa verdade e transformá-la em ficção tem sido o trabalho de minha vida.”
Devolvo ao cesto “Os Pilares da Terra” e pego os livros de Jane Austen – Orgulho e Preconceito e Persuasão, cujas releituras me empolgaram. Entendi que uma releitura é sempre outra primeira vez. Isso é o que um clássico faz com o leitor – é inesgotável.
É possível que, se meu leitor ou leitora me acompanhou até aqui, pergunte se há pontos em comum entre esses autores, ou, se são leituras aleatórias em um veraneio?
Befana!!! Socorro!!
Jane Austen nasceu em Hampshire – na Inglaterra, no ano de 1775, e faleceu em 1817. Em pleno século XVIII – em um tempo em que às mulheres não era permitido uma educação formal. A não ser aquela que propiciasse o desenvolvimento de “talentos”. Cuidar da casa, do marido e dos filhos. Bordar e, quanto muito, tocar piano. Pensar? Jamais. Escrever? Menos ainda. Em um contexto em que o casamento era a salvação para a mulher, ou, livrava-se do controle do pai para o do marido. Jane Austen foi corajosa ao fazer críticas aos costumes e valores da sociedade da época e utilizar uma fina ironia em seus romances. Portanto, até nos dias de hoje é lida e surpreende, sendo objeto de estudos acadêmicos. Seus livros são clássicos – aqueles que a cada leitura têm sempre o que nos dizer.
Orgulho e Preconceito é o segundo romance de Jane Austen. O mais famoso. A história gira em torno das cinco irmãs Bennet – as quais viviam na área rural do interior da Inglaterra, no século XVIII. Aborda a sucessão em uma família sem herdeiros homens, dentro de uma sociedade patriarcal, em que o casamento era fundamental para as mulheres. Assim, quando um homem rico e solteiro muda-se para as vizinhanças, a família toda entra em ebulição. Gostei da narrativa, porque ela reflete a subjetividade da mulher. Em uma época (também) machista.
Persuasão foi o último livro publicado de Jane Austen. Pouco antes de sua morte. Porém, com o devido tempo, foram encontrados muitos manuscritos, pois ela escrevia desde os doze anos. Ela foi uma exceção – como o pai era pastor – e tutor de crianças e jovens – e possuía uma formidável biblioteca, Jane teve acesso à cultura e também esteve em um internato, onde se descobriu escritora, embora escrevesse escondida e as primeiras publicações foram com pseudônimo. Em Persuasão a narrativa gira em torno do arrependimento e perdão. Mas percebi ternura e elegância nas ironias – que são marcantes na obra de Jane Austen.
Então, Befana?
Fechamos?
Bem, ao contrário de Follett, que usa os fatos históricos de forma romanceada – algo amplo –, Austen é microscópica: seus romances focam essencialmente naquele círculo onde se desenvolve a sua narrativa, sem citar o que acontecia de real/fatos históricos – como Follett.
Todavia,
creio que as obras oferecidas aos leitores “casam” em alguns aspectos. Tanto Follett quanto Austen são mestres na criação dos personagens. Como ambos são narradores oniscientes (narram em terceira pessoa), os personagens são construídos em camadas, são complexos, e tomamos ciência de seus segredos e pensamentos saborosos. Tanto que ouvi de meu editor, Marcos Fernando, que ele considera a Jane Austen o Shakespeare feminino na construção de personagens. Além do mais, os dois apresentam o forte protagonismo feminino e denunciam as relações e tratamentos abusivos à mulher, tanto no século XII (Follett), quanto no século XVIII (Austen). E em nossos dias atuais, há repetições desses comportamentos?
Em resumo, esses dois autores dão ênfase ao conceito da palavra LIBERDADE!!!
Então, missão cumprida!!! Viva e leve. Com a brisa refrescante do mar a me impulsionar, alinhada ao horizonte, o coração batendo forte, monto na minha vassoura de Befana, levo o cestinho vazio e deixo os livros com vocês, meus queridos leitores.
Hihihihihihi!!!!!
Cronista Marilia Frosi Galvão compartilha as reflexões advindas de suas leituras
(Foto: Severino Schiavo/Divulgação)
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista. Tem dois livros publicados: "Fagulhas" e "Tudo é Momento".
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