Às 21h30, a plateia perceberá o momento e olhará para o spot no centro do palco. Uma cortina 3x3. Um neon semirrosado. Um microfone à espera. Ninguém ousará se levantar de nenhuma cadeira do bar. Ao redor, o silêncio introdutório de cinco ou seis segundos servirá como atiçação da curiosidade. Sussurros, cochichos, luzes justapostas. Sob o feitiço da suspensão da realidade lá de fora, em alguma mesa alguém levará o copo até a boca e beberá um gole ansioso, sem piscar.
Então o DJ acionará a música para que Frank Sinatra comece mais uma vez a endeusar sua New York, New York. Assobios, clamores e aplausos tomarão conta de tudo, como numa invasão. Charlene surgirá da lateral, com seu corte chanel e sua franja que acaricia as sobrancelhas. Seus cílios se sobressairão, aqueles cílios campeões em erguer a autoestima. O batom estará suave e os brincos, combinando com o vestido, descerão dionisíacos pelo pescoço.
21h32 e o bar já não será mais o mesmo. Enquanto luzes tingidas de arco-íris não cessarão de piscar, Charlene movimentará devagar os saltos altos pelo palco, num efeito meio câmera lenta, imersa em sua performance altamente contagiosa. Mais assobios, clamores e aplausos, agora como numa erupção. Nesse instante, os lábios de Charlene sincronizarão a música do bom Sinatra ao mesmo tempo que seus olhos, num tipo de mímica, dirão: “Bem-vindos ao meu show, babies”.
o projeto, as perdas, o bancário
Charles Machado nasceu em São Borja. Nasceu lá e em seguida já estava morando em Porto Alegre. Os pais dele eram, como se diz, à frente do seu tempo, visto que, numa época em que ninguém falava ainda em mandar os filhos para intercâmbios fora do país, eles já tinham esse projeto para o filho. E para a filha, Caroline, que nasceu dez anos depois de Charles. Mas.
Quando Charles tinha 17 anos, a mãe morreu de insuficiência renal. Seis meses depois, chegou a vez do pai, à conta de um ataque cardíaco. Vulnerável, Charles olhou para fora da janela do quarto e se deu conta de que o verde das árvores havia perdido a vistosidade, os entretons, como se uma película oleosa houvesse se grudado à realidade. Era hora de se virar sozinho.
Charles arrancou a película oleosa que estava grudada à realidade, tornou-se bancário e precisou entoar aquele slogan: “O tempo passa, o tempo voa, e a poupança Bamerindus continua numa boa”. O cotidiano numa boa do Bamerindus duraria para ele só até os 26 anos, já que calculadoras, burocracias e crachás etiquetadores jamais haviam conversado com o íntimo de Charles, que estava prestes a se alargar em Charlene.
coincidência, profecia, house of dolls
Ainda na época do Bamerindus, Charles conheceu um homem de fora do banco. Dois meses depois, como num roteiro inverossímil de novela, esse homem deu um jeito de arranjar um emprego na mesma instituição de Charles. Os dois riram da “coincidência”, passaram no mercado para comprar os ingredientes do jantar e, coisa de pouco tempo, já estavam morando juntos — de acordo com a tabela classificatória que Charles montou para si, dos 10 anos de relacionamento, 9 foram maravilhosos.
Foi quando uma lembrança de adolescência passou a perseguir Charles. Lá atrás, aos 16 anos, ele havia ido à boate gay Pantheon e visto uma figura epifânica. “Vi no palco uma transformista, a Rebecca McDonald, uma visão que mexeu comigo.” Antes dessa visão ao vivo, as referências estéticas de Charles (Olga del Volga, Telma Bolinha) apareciam só na TV. Por isso que, a dois metros de Rebecca McDonald, uma profecia identitária havia se formado imediatamente em Charles, algo que ele, por muito tempo, guardaria só para si.
Essa profecia identitária se externaria pra valer pouco antes de ele pedir demissão do Bamerindus. Naquela hora, Charles espreitou os olhos no espelho, permitiu-se um acercamento à sua real vocação e aceitou o convite de uns amigos que tinham um grupo esteticamente drag, o House of Dolls. “Mas tu precisa de outro nome”, alguém disse. Sugeriram Charlene Voluntária, pelo fato de Charles ser uma pessoa caridosa. “Voluntária, não”, ele disse, “vamos pôr um glamour aí, meu nome é Charlene Voluntaire.”
pierrot, voos, Workroom
No antigo It Club, em Caxias do Sul, Charlene uma vez participou (no papel de um pierrot) de uma tematização do microuniverso de Madonna. Na hora do solo do pierrot, Charlene retirou a máscara do personagem e, num instante de suprassumo, revelou no próprio rosto uma maquiagem estilizada, algo que enfeitiçou o proprietário da casa, Julius Rigotto, fazendo com que Charlene recebesse um convite para trabalhar como drag no Ibiza Club, que seria o bambambã dos litorais gaúcho e catarinense.
O voo de 7 anos pelo Ibiza Club levou a drag Charlene a outros voos — ela passou a ser desejada por boates gays e héteros de todo o RS, numa abertura precursora de caminho. Vitraux Club, Notredame, Indiscretus. Voos que a conduziram inclusive à RBS TV, em várias participações tanto no programa Patrola quanto no Teledomingo, apresentado por Paola Vernareccia, logo após o Fantástico. Ali, Charlene Voluntaire se reafirmava como voluntária da volúpia, do grande prazer dos sentidos.
Sentidos que fizeram um Charles tímido, mas uma Charlene despachada. E ela já tem 26 anos de palco — coincidindo com a mesma época do filme Priscilla, a Rainha do Deserto. Cores, cintilações, cílios e sobrancelhas. São quase 21h30 e Charlene está prestes a entrar no Workroom, na Cidade Baixa, em Porto Alegre. A plateia perceberá o momento e olhará para o spot no centro do palco. Uma cortina 3x3. Um neon semirrosado. Um microfone à espera. Agora a vez é toda sua, Charlene Voluntaire.
Confira vídeo no Instagram com performance de Charlene AQUI