POR MARCOS MANTOVANI
Bruno Arámburu não é sensitivo, mas captou a mensagem de Belchior. A mensagem estava descansando no meio de uma música, à espera de que alguém a captasse. Falando assim, parece que foi fácil. Só que, para fazer essa captação, Bruno precisou transpor o lugar-comum das coisas e invadir o território das significações.
A mensagem de Belchior que arrebatou Bruno está dentro do disco “Alucinação”, na faixa 1 do lado B. Mas o inesperado foi que, em vez de captar a mensagem por meio do disco, Bruno a viu escrita no cartaz de um bloco de carnaval, em fevereiro de 2020, no entorno do Jardim Botânico carioca.
Era a véspera da disseminação do coronavírus no Brasil. E Bruno se apaixonou pela mensagem de Belchior. “Amar e mudar as coisas”, dizia o cartaz do bloco de carnaval. Cinco palavras que deflagraram em Bruno a atitude dos fazedores de diferença — nascia ali uma ideia chamada Belchior Solidarius.
o Matheus, a parceria
Na época em que captou a mensagem de Belchior, Bruno estava namorando com o ator Matheus Nachtergaele, a travesti “Cintura Fina” da minissérie da Globo “Hilda Furacão”. Matheus estava lá quando Bruno estacou em frente à frase de Belchior. E, pelo fato de às vezes andarem de mãos dadas, a mensagem acabou se alastrando pelos dois.
Minutos após o instante de epifania, ainda no entorno do Jardim Botânico carioca, Bruno disse a Matheus Nachtergaele que precisava de caneta e papel, porque recém tinha visualizado a concepção de um projeto voluntário — espécie de ONG alternativa e descentralizada, cujo objetivo seria ajudar pessoas socialmente vulneráveis.
Matheus Nachtergaele gostou do que ouviu do namorado e, sem usar nenhum recurso frasal de minissérie da Globo, disse que toparia ajudar. A parceria afetiva ganhava ali uma extensão social, política e sincera, que faria com que o ator expusesse a ideia do voluntariado para todo o Brasil, dando ao Belchior Solidarius a chance de crescer.
os uruguaianenses, os russos
Bruno é de Uruguaiana, e todos que são de Uruguaiana possuem o ímpeto de revolucionar a América Latina — ou pelo menos sacudir o seu próprio continente interior. Ele saiu de lá na pré-adolescência e foi a Porto Alegre para ser goleiro do infantil do Grêmio, aventura que durou um ano e rendeu um título gaúcho.
O destino de Bruno deu voltas em Porto Alegre e fez com que ele acabasse nas salas de aula da UFRGS, formando-se em Matemática. Houve também o ingresso num mestrado. Houve a vida doida na Cidade Baixa. Houve a constituição da banda roqueira Medanojo, cujo preciosismo da guitarra era de responsabilidade de Bruno.
Só que a roleta o conduziu a Caxias do Sul. E foi em Caxias que a leitura dos russos pegou Bruno de vez. Tosltói, Tchékhov, mas sobretudo Dostoiévski — os pés de Bruno no RS, enquanto o imaginário vivia na São Petersburgo do século 19. Como efeito colateral, essa mescla de literatura, filosofia e revolução pariu uma faceta de escrita em Bruno, que aos 38 anos já publicou dez livros.
solidarius, sanduíches
O início da pandemia coincidiu com o nascimento da rede de solidariedade Belchior Solidarius. Bruno havia sido fisgado pela mensagem de Belchior lá no Rio de Janeiro e, de volta a Caxias, fez o projeto acontecer. O escritório foi o WhatsApp, já que o confinamento restringia os movimentos. Formou-se um grupo, depois um roteiro de ações, e por fim uma utopia referencial.
Nas semanas introdutórias, os primeiros discípulos de Belchior se concentravam na montagem de sanduíches, que seriam distribuídos para moradores de rua de Caxias do Sul. Se lá do Rio de Janeiro o ator Matheus Nachtergaele era o patrono do projeto, nas calçadas caxienses Bruno era o soldado no front, o encarregado da distribuição das refeições.
A logística e os participantes solidários aumentaram depressa. Havia muitas pessoas nos bastidores fazendo doações (roupas, cobertores) e ajudando a montar sanduíches e choripans. E não demorou nada para que Bruno articulasse extensões e grupos de WhatsApp em outras cidades e estados, chegando até mesmo ao Paraguai (Assunção) e aos EUA (Califórnia e Iowa). O Belchior Solidarius se universalizava.
o tato, a mística
O tato de Bruno para lidar com pessoas socialmente vulneráveis tem origem na docência. Ao longo da última década, ele foi educador social no Centro da Criança e do Adolescente da Lomba do Pinheiro, em POA, assim como foi professor de matemática em duas instituições privadas caxienses de ensino.
Mas, além da docência, o tato de Bruno surge também de outras amplitudes. É aí que, de alguma forma, ele se assemelha a Belchior, tendo em comum a sensibilidade humana que o artista possuía. O proativismo de Bruno em relação aos vulneráveis já o fez inclusive levar de carro um morador de rua (perdido em Caxias) de volta a Itajaí, em SC.
A mística. Antes de morrer, Belchior foi viver no Uruguai, em Artigas, cidade onde Bruno tem parentes. Talvez seja só coincidência. Porém isso não importa muito. O que importa é que, ao lado do filho Luiz Henrique, 7, que tem síndrome de Down, e também ao lado da herança sensível de Belchior, Bruno Arámburu continua sendo apenas um rapaz latino-americano, um rapaz inquieto que, ao invés de celebrar as pulsões governamentais de morte, escolheu celebrar a vida.