Por Marilia Frosi Galvão
“... Pela primeira vez ela o olhou nos olhos. Pela primeira vez, Flush viu a dama deitada no sofá. ‘Ah, Flush.’ Os dois se surpreenderam. Cachos pesados pendiam das laterais do rosto da Senhorita Barrett; grandes olhos espertos brilhavam; uma grande boca sorria. Orelhas pesadas pendiam das laterais do rosto de Flush; seus olhos também eram grandes e inteligentes; sua boca estava aberta. Havia algo comum entre os dois. Enquanto encaravam um ao outro, pensaram: aqui estou eu. Então, sentiram: mas que diferente!... Entre os dois existia o maior abismo que pode separar um ser do outro. Ela falava. Ele era mudo. Ela era uma mulher; ele era um cão. Assim, intimamente ligados; assim imensamente separados, um encarava o outro. Então, de um salto, Flush subiu no sofá e se acomodou no lugar em que permaneceria para todo o sempre – sobre a manta aos pés da Senhorita Barrett.”
Esse é um pequeno excerto de uma obra da escritora inglesa Virginia Woolf, história cheia de humor e de graça: FLUSH – Memórias de um cão. Neste livro, a autora nos delicia com os mistérios e aventuras da vida vistos através do olhar de um cocker spaniel. Como uma terapia, Virginia resolveu dar vida a Flush. Assim explicou a uma amiga: “Flush é apenas uma brincadeira. Eu estava tão cansada após ‘As Ondas’ que deitei no jardim e li as cartas de amor dos Brownings, e a imagem do cachorro deles me fez rir tanto que não pude deixar de dar-lhe vida”. (Os Brownings são os célebres poetas vitorianos – Elizabeth Barret e Robert Browning. E Virginia jamais imaginou o sucesso que teria essa “brincadeira’, aliás, uma brincadeira literária virtuosística, segundo seus editores).
A deliciosa obra de Virginia Woolf que inspirou este texto (Foto: Arquivo Pessoal)
Então, inspirada por Virginia Woolf, se bem que muitíssimo aquém do seu gênio criativo, também dou voz a um cão – um poodle chamado Bóris, e relato alguns momentos impagáveis com este cãozinho, o qual também permaneceu aos meus pés para todo o sempre, como Flush aos pés da Senhorita Barrett.
"Vamo passiááá!!!!! Si bamooooo!?!?!” Au, au. Esse convite, essas palavras, me deixam louquinho. Fico agitado, feliz demais, sou pura alegria, pulo, uivo, dou latidos, ofereço a barriguinha, corro para onde está a coleira, tudo quase ao mesmo tempo. Au, au. “Si bamo, sim!!”
Quero sentir os cheiros do mundo. Há uma bateria deles me aguardando – cheiros de terra nos canteiros - de grama - de flores - nas calçadas – nas sarjetas – nas paredes das casas – nas pernas e nos pés das pessoas passantes – e – de outros bichos – de traseiros de cadelinhas, auau... adoro também os cheiros que o vento traz e meu focinho fica vibrando no ar. Adoro o cheiro da liberdade. Correr como um coelho pela grama lá na chácara, ouvir os passarinhos cantarem, adoro a praia, o cheiro do mar...
Haham, se há coisa que amo e faço muito bem é apreciar e perceber os cheiros, os perfumes. De um cheiro a outro, de um perfume a outro, vou ziguezagueando o meu caminho. Por sorte, minha coleira é daquelas que esticam, tenho espaço para malandrear à vontade. Só me puxam quando me empolgo demais e tento ir para o meio da rua. Ufff, por pouco e por várias ocasiões, não fui atropelado, quer dizer, fui sim, por uma bicicleta, e na calçada. Misericórdia!”
Há momentos em nossas vidas em que dizemos sim, por estarmos cansados de dizer não, ou por não haver mais argumentos sustentáveis. Esse sim foi dito dias antes do Natal (a gente fica “mole”).
Era domingo. Linda manhã de sol. Estávamos dando um passeio em família pelo Parque da Redenção, em Porto Alegre, no Mercado das Pulgas, quando deparamos com uma cesta. Nela, três cãezinhos recém-desmamados – cabiam na palma da mão. Fabi, então com quinze anos, me olhou imitando um cãozinho ofegante, com a língua de fora – mãe, eu cuido – eu faço tudo – eu ensino o xixi no lugar certo – eu levo passearrrrr... Simmmmmmmmm!!!!! Disse eu, após anos de negativas. (Passarinhos, canários, tartaruguinhas e o peixe Eswaldo foram substitutos-desculpas para não assumir um cãozinho, sempre desejado pelas crianças, Fabi e Xande).
Não, eu não poderia suspeitar que aqueles 17 segundos, entre o pensar e o aquiescer, seriam o prenúncio de 17 anos de amor, aventuras, aprendizado e dedicação, e... Sim!!!! Somos uma família “cachorreira”.
"Bóris!!! Bóris!!! Bóóóórissssss!!! Assim me chamam, foi a Fabi que me achou com cara de Bóris. Um nome imponente para mim, que nunca pesei mais do que três quilos. Vá lá, tamanho não é documento, como dizem. Porque, quem manda na casa, sou eu.
Nasci no dia 4 de novembro, signo de Escorpião, temperamental, sentimentarrrrrrr, meio trágico e encucado. Ia dizer que puxei à minha amada, ela, vocês sabem quem... mas deixa assim. Melhor que ela nem saiba que eu disse isso.
Minha família me encontrou quando eu tinha 40 dias. Minha pelagem é macia, da cor champagne; quando meu pelo cresce, fica crespo e minhas orelhas felpudas têm uma tonalidade de abricó. Meus olhos castanhos são espertos, dizem. Meu rabo, ou mil floreios, me entrega - sou excitado demais, de tamanho médio, sem pompom, ainda bem. Sou elegante, tenho o porte pequeno. Poodle Toy.
Eu mesmo, sendo fofo e encantando a família da Marilia (Foto: Marilia Frosi Galvão)
Tenho uma afeição sem medidas pela minha família: o vovô, a vovó, a mamãe Fabi, o titio Xande e a tata Sirley. Mas, mais e mais que tudo, e mais ainda, amo a vovó, eu escolhi ela. Quando ela sai para trabalhar, me desespero, não entendo, ela me abandonou? Vai voltar? Pra me consolar, pego o chinelo dela (tem um chulezinho que eu amo) e coloco ele aqui na minha caminha. De tardezinha, sempre à mesma hora, espero ela no hall. Deito ali no tapete, apoio a cabeça nas patas cruzadas e fico olhando para a porta até ouvir os passos dela. Chegando!! Pra mim!!”
Se me questionassem sobre: o que é alegria? Eu diria que alegria é sinônimo de Bóris – alegria (alacer em latim) traduz o que se refere a rápido, vivaz, animado. Não há descrição melhor. E essa alegria em formato canino, enquanto presente em nossas vidas, só nos enriqueceu como seres humanos.
Bóris sabia interpretar nossas emoções – e se solidarizava conosco. Demos muitas risadas. Na alegria e na tristeza - sempre junto. Lembro de um dia estar chorando, sei lá por que motivo. Em dado momento, senti na pele de meu braço o toque aveludado das almofadinhas de uma pata e, ao mesmo tempo, ouvi uivos entremesclando-se aos meus soluços. Ele, sempre brincalhão e feliz, mostrou a que veio. Manifestava um infinito amor, emoções e sentimentos, alegria, saudades, tristeza, pânico quando ficava sozinho, e, sobretudo aquele dever – ele tinha de cuidar de nós.
Bóris era a minha sombra. Companheiro de cama, mesa e banho. (baita clichê.) Com ele, também aprendi uma forma diferente de maternar – precisei organizar minha vida para ter tempo de cuidar, de levar a passear, de alimentá-lo saudavelmente, de dar colo, de vestir, levar ao banho, tosa, veterinário, vacinas... um filhote, um filho, Bóris-família.
Penso, ainda hoje, na alegria. Como ele, sinto a mesma alegria ao estar perto ou junto a certas pessoas. Um sentimento genuíno, alegria no estado mais puro, felicidade, estar na presença, com a presença de... certas pessoas. Essa alegria que sinto – Bóris me ensinou.
“Ah, auauau. Tem momentos em que não sei bem se o que sinto tá acontecendo de verdade, se são lembranças, vou ao passado, misturo com o presente, mas... como sou um cãozinho inteligente e alegre, confesso que fiz coisas interessantes, com a intenção de agradar.
De uma feita, ainda era bebê, peguei a ponta do papel higiênico no banheiro, e me fui. Atravessei o corredor, passei pelo hall, cheguei na sala, e, como uma fita de presente, embrulhei a mesa e as cadeiras da sala de jantar. Que rolo! Que bacana ficou! Au au.
Em um verão, fui acusado de deixar os familiares de “pé no chão” – ahah -, é que roí aquela tirinha que ficava entre os dedos – eheh – dos chinelos de dedo. Agora, o tempo fechou mesmo, pros meus lados, quando, sozinho em uma tarde – precisei me ocupar com algo –, foi o sapato novo da Fabi – nham –, o salto ficou legal, cheio de marcas bem mordidas.
Mas, do eu gostava mesmo era... filar um rango diferente, quando o pessoal se distraía. Era um salto na cadeira, outro na mesa, o bife à milanesa na boca e zás, queria ver quem me pegasse. Ah, tem essa outra “aprontada” – foi uma vez só, mas entrei pelo cano, como dizem: o causo é que eu adorava chicletes. Quando via alguém mascando, eu pedia. Naquela vez, senti pelo cheirinho. Humm, dei um salto para o cinzeiro, onde havia um, mas estava grudado em um toco de cigarro, kkk, foi o dia que entendi; fumar faz mal. Ah, que delícia é a pele de um tainhão na lixeira da cozinha da casa da praia! Queeeee delíciaaaaa!! Mas, durou pouco minha festa, me pegaram logo e, ainda por cima, fiquei muito fedido. Precisei de um banho.
Ah, por falar nisso, houve uma vez em que o banho teve de ser no tanque – banho triplo. Nunca vi minha vó tão brava. Foi mais ou menos assim - ela tinha pouco tempo, logo iria para a escola, mas me levou para um passeio rápido. Num canteiro, havia um cheiro estranho sob a grama fofa e alta. Resolvi coçar as costas, me esfreguei bem, com as patas para cima. De repente, minha vó gritou – eu estava todo sujo daquele cocô alheio escondido ali. Era cocô por tudo: nas costas, na coleira e... nem vou dizer o resto. Coitada da vó!! Ela não tinha por onde me pegar, correu pra casa comigo suspenso, quase chorando de raiva, hehe, subiu pelas escadas pra se esconder dos vizinhos e... nem conto o resto da confusão.”
Meu olhar preso nesse passado tão incrível, compartilhado com a presença alegre e amorosa desse cãozinho, deixou marcas de aprendizado em mim que me fazem refletir sobre a finitude. Percebo, no presente, que essas camadas de passado se solidificaram em mim, e preenchem espaços vazios. Por certo, foi preciso lidar com o inevitável, com o fim... mas ainda permanece uma conexão.
Éramos parecidos. Ele me imitava. Ainda hoje, sempre que bato um ovo na pia, para descascar, parece-me que ele virá correndo, de onde estiver, para saborear um pedaço de ovo cozido. A porta de entrada do apartamento conserva as marcas arranhadas por suas unhas. Nas ruas por onde ando, relembro, como um filme em minha mente, algum episódio com ele... as fotos que clicamos são inúmeras e, seguidamente, falamos nele com saudades e boas risadas de suas brincadeiras. Quantos veraneios e finais de ano com ele!! Quantas histórias!!!
Bóris ainda vive, de outra forma. Vive em mim. Em meu espírito. Vive nas lembranças conscientes e inconscientes, através dos meus sonhos.
Como eu pude amar tanto essa criaturinha peluda – com olhos castanhos e um focinho orvalhado?
Não sei.
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista
A coautora humana do texto, Marilia Frosi Galvão (Foto: Claudia Haupt)