Por MARCOS FERNANDO KIRST
Bob Dylan é a lenda viva mais longeva que o mundo já produziu. Desde que surgiu no cenário folk norte-americano, aos 18 anos de idade, em 1959, empunhando um violão, uma gaita de boca acoplada ao pescoço e uma voz anasalada que faria história, já estava justamente fazendo história e empunhava ares de lenda viva. Foi a lenda viva mais jovem já gestada, e segue defendendo o cinturão com a mesma qualidade e obsessão de quando surgiu, seis décadas atrás (sim, o rapaz empilha 60 anos de estrada, em seus 78 anos de vida, com 38 álbuns de estúdio gravados).
Agora, em plena quarentena mundial devido ao coronavírus, ele brinda os fãs com uma novidade interessante para embalar a trilha sonora do recolhimento forçado: lança a público sua primeira composição original após oito anos sem oferecer nada de autoral em seus três últimos lançamentos.
Trata-se da canção “Murder Most Foul” (algo como “O Assassinato Mais Imundo”, em tradução livre), de surpreendentes 17 minutos de duração. Sim, dezessete, afinal, Bob Dylan é Bob Dylan e ele faz o que quer, mesmo que pareça (e muitas vezes pareceu) que não faça sentido e ele esteja na contramão de sua época. O fato é que estar na aparente contramão e surpreender, oferecendo ao público não o que ele pede, mas o que o artista quer dar, vem provando (ao menos, no caso de Bob), que ele tem estado certíssimo o tempo todo.
Quando queriam músicas acústicas embaladas pelo folk, padrão que o lançou e consagrou, Bob ofereceu guitarras e rock; quando queriam mais rock, enveredou para a música gospel; quando cansou, retornou ao rock, folk, country; depois, suavizou o som e criou uma atmosfera clássica-clean-dandi com uma banda afinada e alinhada, que está na ativa em suas turnês atualmente; quando pediram músicas autorais que refletissem sua maturidade criativa, inundou a última década com o lançamento de três álbuns focados em versões cover de grandes clássicos da música norte-americana, em um precioso trabalho de resgate cultural. Seu último trabalho autoral foi “Tempest”, de 2012. Depois dele vieram “Shadows in the Night”, de 2015, “Fallen Angels”, de 2016, e “Triplicate”, de 2017, sem nenhuma faixa composta por ele.
O que viria depois? Ora, uma faixa de dezessete minutos enfocando o assassinato de um presidente norte-americano, óbvio! Óbvio? Claro que não! Bob Dylan jamais vai prover seu público com o óbvio. Quando o fizer, deixará de ser Bob Dylan, essa original persona-força-da-natureza criada pela mente de Robert Allen Zimmerman, tanto tempo atrás.
A longuíssima (e encantadora) “Murder Most Foul” se debruça a descrever e criticar o assassinato do presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, ocorrido em 1963, ídolo do cantor que, pelo visto, ainda não digeriu o episódio (espinhoso e até hoje cercado de mistérios e questionamentos). A faixa é uma balada leve tocada ao piano, acompanhada ao fundo por cordas e uma bateria discreta. Para ser usufruída com a calma e a lentidão que nossos isolamentos sociais permitem, nesses tempos de coronavírus, quando só mesmo artistas de primeira grandeza conseguem nos trazer algum consolo por meio de sua arte.
Desfrute aqui a Murder Most Foul, de Dylan.