O amplo e inesgotável universo da gastronomia vem descomprimindo fronteiras de forma irrefreável nas últimas décadas, desde que ir para as panelas deixou de ser apenas uma obrigação estafante do cotidiano para se revestir em atividade cult, “in”, da hora, “massa”, bacaninha. Todas as famílias passaram a ter um chef em casa, e a gourmetização do ato de se alimentar virou pandemia, gerando, às vezes, saias justas para os neófitos.
Neófito, pois, que sou nessa seara, produzi algumas crônicas que abordam de maneira divertida esse universo, a partir de minhas próprias salgadas excessivas do purê, nos desandares das minhas maioneses. Confira uma delas:
GARFO E FACA NAS PÉTALAS
(por Marcos Fernando Kirst)
A coisa tem até nome. Parece que o termo correto e elegante é “gastronomia contemporânea”. E vou dizer uma coisa para a senhora: agora, come-se até flores. Sim, madama, acredite. Já apliquei para a senhora antes? Jamais! A senhora ainda vai me agradecer por eu lhe alertar sobre essas coisas, evitando que passe pelas situações embaraçosas nas quais me vejo às vezes enredado justamente por não contar com um cronista benemérito que me previna.
Flores, madama, decidiram que flor é artigo comestível. E come-se. Descobri isso noite dessas em que me vi assentado, penteado e engomado, em uma mesa redonda repleta de talheres e pratos sobrepostos, em evento de suma importância ao qual fui convidado juntamente com a esposa.
O jantar era à francesa, o que significa, conforme a esposa pacienciosa e discretamente me ia explicando, que a comida seria servida empratada pelos garçons, primeiro a entrada, depois a salada, depois o prato principal, depois o segundo prato e daí a sobremesa. Nada daquilo de se levantar correndo até o buffet posicionado no meio do salão e, aos cotovelaços, disputar os melhores nacos de medalhão ao molho madeira e as colheradas de purê de batatas, conforme estou habituado. Tudo bem, entendi o recado, tirei os cotovelos de cima do prato após o joelhaço desferido por ela sob a toalha alva e fiquei à espera, quietinho.
Chegou a entrada. Havia um tijolinho de patê que minha esposa chamou de “terrine”; uns fiapos de vinagre escuro espalhados pela base do prato, que ela batizou de “aceto balsâmico” e... pétalas de flores encimando o conjunto. Ok, achei bonitinho o arranjo, tirei para o lado as folhinhas coloridas e desandei a destruir o tijolinho de patê a golpes de garfo. Sim, a terrine, madama, a terrine.
Quando terminei de comer, minha esposa cochichou em meu ouvido: “não seja grosso, coma as flores, não as deixe no prato”. Comer as flores? Não perguntei duas vezes. Ao ver que o joelho dela novamente se movimentava em minha direção, engoli as florezinhas de uma só garfada.
Aprendi, então, que flor se come. Ao menos, em restaurante, sim. Quer dizer, não é bem assim, nunca é bem assim. Ontem, ao chegar com a esposa em outro estabelecimento gastronômico integrado à rede dos “contemporâneos”, não tive dúvidas ao sentar à mesa e ir atacando, de garfo e faca, o arranjo de flores disposto em um vasinho no centro da mesa.
Horrorizada com o gesto, minha esposa rosnou: “não seja grosso, largue essas flores”. Mas, afinal, grossura é não comê-las ou comê-las? Já não entendo mais nada. Preciso ir a uma churrascaria...
(Crônica originalmente publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1º de maio de 2017)