POR MARCOS FERNANDO KIRST
A publicação, aqui no site, de um texto de autoria da escritora cearense Rachel de Queiróz (1910 - 2003), na seção “Nostalgia Daquela Crônica” (leia o texto AQUI), despertou em alguns leitores a recordação do fato de que a renomada autora visitou certa vez Caxias do Sul, muitas décadas atrás, e eternizou as impressões obtidas da cidade na coluna que assinava na afamada revista carioca “O Cruzeiro”.
O artista plástico e poeta Valdir Dos Santos evocou o episódio, postando o seguinte nas redes sociais: “Caxias tinha lindos canteiros de rosas esplêndidas na Praça Ruy, hoje a detonada Dante Alighieri. Rachel de Queiróz visitou a cidade na década de 1950 ou logo depois, e se apaixonou pelos roseirais. Isso valeu uma crônica na revista ‘O Cruzeiro’. Passou-se o tempo e as rosas foram arrancadas por algum reformista político, que se perdeu na história com o devido e merecido anonimato. Ficou a lembrança das rosas que Rachel, delicadamente, descreveu”.
Essa passagem de Rachel de Queiróz por Caxias do Sul no começo da década de 1950 (mais precisamente, em 1952) integrou uma longa turnê que a renomada cronista nacional empreendeu à região Sul do país, rendendo diversos textos saborosíssimos temperados com as impressões que colecionou das localidades sobre as quais debruçou seu aguçado olhar de cronista. Na época, Rachel assinava uma seção na revista, intitulada “Última Página” (localizada exatamente na PENÚLTIMA página da publicação), com alta leitura. Na edição de 28 de junho de 1952, Caxias do Sul e Porto Alegre brilharam nas suas inconfundíveis linhas, no texto que recebeu por título “Entrando no Rio Grande do Sul”.
O encantamento de Rachel de Queiróz pelas rosas que, à época, adornavam os passeios da Praça Dante Alighieri (que então atendia pelo nome de Praça Rui Barbosa e só voltaria à denominação original em 1990), também foi evocado em uma crônica do jornalista e escritor caxiense Jimmy Rodrigues (1925 – 2013), originalmente publicada no jornal “Pioneiro”, em 11 de novembro de 2003, e depois reunida na coletânea “A Voz e a Palavra, o Fluir da Vida Sob o Olhar do Cronista”, organizada por mim e publicada em 2007. Naquele texto, intitulado “As Rosas de Rachel”, Jimmy recorda que gostava de sentar nos bancos da praça e ficar observando as roseiras, que enfeitavam aquele logradouro central da cidade nas décadas de 1950 e 1960. Jimmy revelou ter ficado encantado ao saber que, “como todas as almas sensíveis, a escritora cearense encantou-se com as rosas de nossa praça”.
Anos depois da passagem de Rachel pela praça florida de Caxias do Sul, as rosas desapareceram e deixaram saudades nas almas mais sensíveis, de Caxias e de fora. O cronista caxiense, naquele texto também memorável (rosas inspiram brilhantes escritos em cronistas de sul a norte neste país, conforme Rachel e Jimmy comungam forças em provar), resumia assim a nostalgia pelas rosas sumidas: “As rosas de Rachel, que eram minhas também, não eram perpétuas. E transformaram-se em pó”.
Pelo menos, restam, para nós, transeuntes da praça desroseirada da atualidade, os belos textos legados por esses grandes cronistas. O de autoria de Rachel, pouco conhecido e menos lembrado, que inspirou Jimmy, segue reproduzido abaixo, na sua parte inicial, dedicado a Caxias do Sul (na segunda parte, Rachel discorria suas impressões sobre Porto Alegre). Confira:
ENTRADA NO RIO GRANDE DO SUL
Por Rachel de Queiróz, na revista “O Cruzeiro” (28/6/1952)
De primeiro chamava-se apenas Caxias. Mas agora é “Caxias do Sul”, embora conserve o apelido gracioso de “pérola das colônias”. Terra do vinho, o melhor vinho brasileiro sai dos seus vinhedos e das suas cantinas. Há por aqui um tipo de “Cabernet” e o seu irmão gêmeo “Merlot” tintos leves e secos como o ar da serra, que só cedem lugar aos grandes vinhos europeus.
Naturalmente, o principal passeio do turista, em Caxias, é a visita às cantinas, que é como se chamam as fábricas de vinho. Mas não se deixe impressionar pela palavra “cantina”, meu velho turista, e não espere nada de primitivo ou romântico. Cantinas são fábricas (em geral grandes fábricas), nada mais. Máquinas poderosas, moderníssimas, que, na impressão do leigo, tanto poderiam servir para fazer vinho como para fazer remédios ou produtos químicos. Fábricas imensas onde o vinho branco se transforma em champanha, gaseificadores para o frisante, complicados aparatos de calor que produzem o suco de uva concentrado, máquinas que engarrafam, empacotam, rotulam – uma usina, é o que é.
Mas – e os pés vermelhos das raparigas que esmagam uva nos lagares? Ai, hoje se acabaram os lagares, e a higiene poria na cadeia quem tivesse a ideia de esmagar uvas com pés, fossem embora os pés de raparigas em flor. Hoje, os cachos de uvas são carregados em caminhões, que os despejam em um armazém; daí passam por uma prensa contínua, que substitui os pés das moças no lagar. E até se dividir uma parte em vinho e a outra em bagaço e bagaceira, a uva jamais é tocada por mão de moça nenhuma, quanto mais pé!
Caxias, contudo, não são apenas vinhos e vinhedos. É a serra, são as rosas, as mais lindas rosas que conheço. São os jardins públicos à italiana, e toda casa, por mais pobre, tem sempre o seu jardim muito verde e todo estrelado de flores.
Num recanto da praça principal, entre roseiras e murtas, uma estátua: e por aí se verifica o refinamento natural produzido pelo convívio com a vinha e os seus nobres licores: a estátua não é de chefe político, nem de general vitorioso, nem de benfeitor local: é um busto do Dante. O altivo perfil de águia recortado no bronze, a majestade do florentino abençoando as rosas e as crianças que brincam ao seu redor. Na peanha simples de granito, duas datas, marcando o sexto centenário de Dante, e este ofertório: “Caxias, in onore del altíssimo poeta”.
Caxias é ainda a terra das malharias de lã, da metalurgia e várias outras indústrias. Trabalha-se muito, mas apesar disso a cidade e as pessoas são tranquilas; sente-se ali uma espécie de atmosfera mediterrânea, trazida pelos imigrantes italianos que fundaram a colônia e lhe marcaram a feição e os costumes.