Caxias do Sul 21/11/2024

A nação dos treinadores de futebol abre alas para a turba dos epidemiologistas

Cada vez mais surpreendentes as reflexões do escritor Tiago Marcon sobre o cotidiano transmudado pelo coronavírus, em seu “Diário do Isolamento”
Produzido por T. S. Marcon, 11/04/2020 às 18:32:47
A nação dos treinadores de futebol abre alas para a turba dos epidemiologistas
Foto: FOTOS TIAGO SOZO MARCON

DIÁRIO DO ISOLAMENTO

Por T. S. Marcon

SEXTA, 27 DE MARÇO, DÉCIMO DIA

Café da manhã ligado nas notícias da TV.

Finalmente consegui acertar o tempo narrativo deste diário. Dei a partida nos registros com 4 ou 5 dias de atraso, escrevia assim no pretérito, com anotações iniciais num caderno de capa preta ou no bloco de notas do celular, só depois o computador; mas agora anoto as ocorrências e suas reflexões no exato instante (ou muito próximo do tempo) em que se desenrolam. Por isso vou adotar o presente como tempo narrativo, isolado amigo, distante leitor.

Brasil, a incrível história de um país que passou de uma nação de treinadores de futebol a uma gigantesca turba de epidemiologistas. Poderia ser uma tese de mestrado. Agora todos subitamente passaram a entender de virologia ou de saúde pública, e desfilam suas teorias nas redes sociais, em grupos de whats, ou em esparsas entrevistas na TV. Até os médicos, autoridades no tema, foram atingidos pelo bisturi sempre afiado da ideologia: uns defendem o isolamento total; outros, o parcial. Estes últimos tentam disfarçar com a máscara da técnica o que, no fundo, é uma opção política, afinal é a bandeira do presidente apologista da tortura e seus fanáticos seguidores. Felizmente, são a minoria. Lembro das aulas, na faculdade de Arquitetura, da disciplina de Estruturas de Concreto Armado: dimensionar sempre para o pior caso.

No fim da tarde ligo para a Brenda. Conversamos animadamente, e isso me injeta uma boa dose de felicidade. “Estamos vivendo dias históricos, filha. Imagina o que tu poderá contar pros teus filhos”. Ela ri, e me conta sobre as aulas à distância. As pequenas falhas técnicas, os atrasos, os filhos ou maridos das professoras que, inadvertidamente, entram ao fundo da cena durante a transmissão. Ouço o Fredd latir ao fundo, Brenda conversa um pouco com ele, bota seu focinho ao telefone. A 800 metros dali, meus olhos ficam úmidos.

SÁBADO, 28 DE MARÇO, DÉCIMO-PRIMEIRO DIA

Nunca lavei tanta louça na vida, penso, ao esfregar com a esponja uma jarra de vidro que, por sorte, escapa à minha costumeira inabilidade e se mantém presa a meus dedos ensaboados de detergente; a pequena glória de evitar um acidente doméstico… eis outro grande gozo do agora.

Suco de limão todos os dias é uma boa receita do meu pai. Com casca e tudo, gelo e açúcar no liquidificador, o motorzinho do eletrodoméstico ligado em velocidade média por, no mínimo, uns 2 minutos. Depois se coa. Essa é da minha mãe: gargarejo de água morna, sal e vinagre. Uma lição preventiva de saúde que aprendeu com a minha nona. Uma boa assepsia bucal, só com ingredientes caseiros.

Nos sábados de tarde de outrora, naquele outro mundo, fiz parte de uma turma chamada Os Bodegueiros. Nossa tarefa preferida consistia em percorrer bares urbanos (de preferência os que dispusessem de mesas sobre a calçada) para sorver cervejas artesanais, nosso elixir, e rir. Existir.

É verdade que essa espécie de forma de arte tinha arrefecido bem antes do surgimento do vírus, mas, de qualquer forma, ainda havia o encontro presencial, uma caminhada qualquer com alguém da turma, cervejas no Maria do Toca. Ou um churrasco improvisado no pavilhão do Ale (sócio-fundador da Firmeza, ceva artesanal aqui da cidade, bebida que te deixa alucinado pelo sabor). Saudade de beber Firmeza em potes de conserva de vidro lá no pavilhão do Ale, toda a turma na frente da churrasqueira de tonel acesa, quatro ou cinco espetos de carne coruscando lentamente sobre ela, os engradados plásticos da bebida feito um Lego, usados na função de mobiliário. A memória nunca ficará isolada.

Boa notícia: mesmo com outro tenebroso decreto do presidente (que inclui as igrejas como serviços essenciais que devem permanecer abertos durante a pandemia!), o bispo da cidade não pretende abrir os templos daqui.

Deus vê tudo. Afinal, a máscara não atrapalha.

DOMINGO, 29 DE MARÇO, DÉCIMO-SEGUNDO DIA

Domingo de sol pleno, indiscutível. Árido.

Outra vez a saudade dos espaços abertos. De sucumbir, sobre a bike, à força da gravidade na descida pra Santa Justina, naquele túnel verde de árvores sussurrantes que é o preâmbulo do grande passeio. Saudade também da chuva. Do meu pai, da minha mãe, do futebol.

Faz tanto tempo que não vejo o Internacional jogar que o futebol me parece hoje uma prática exótica trazida por algum alienígena – 22 caras lutando pela posse de uma esfera de couro inflável que deve ultrapassar um retângulo composto pela grama do piso e três traves de metal – e os nomes Coudet e D'alessandro, os de dois pintores franceses, expoentes respeitados de uma escola de arte chamada Coloradismo. E se não há futebol nem bike hoje, meu esporte passa a ser o levalixol.

O levalixol é uma atividade que consiste na condução adequada, isenta de acidentes ou vazamentos, de sacolas plásticas estufadas com resíduos orgânicos e recicláveis até um invólucro feito com cantoneiras metálicas e revestido com tela otis (popularmente conhecido como lixeira) situado na frente do nosso edifício.

“Beibi, vou descer pra levar o lixo”, aviso à Juliana.

“Não precisa, beibi, deixa que eu levo.”

“Acabei de pegar o do banheiro, nem te preocupa. Já volto.”

“Beibi, não, tu já lavou a louça ontem, pode deixar que faço isso.”

“Não gosto de fazer as coisas pela metade. Não te estressa.”

“Beibi, tu ficou surdo? Deixa que eu levo.”

“Bah, Juliana, sério… fica lendo aí no sofá. Muito mais agradável pra ti.”

“Me dá esse lixo aqui, agora!”

Isso porque o levalixol, em domingos reclusos de sol pleno, é um esporte muito disputado.

Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal

E-mail: tsozomarcon@gmail.com