Por MARÍLIA FROSI GALVÃO
Pois bem, a história verdadeira assim começou. É importante ater-se ao início, porque, quando chegarmos ao fim, seremos gratos pela experiência.
Era uma vez ...
Não, não é um conto de fadas, mas pode ser um conto de magia, de bruxaria com palavras e um final diferente do “... e foram felizes para sempre!” É a história real do universo de uma escritora múltipla na vida e na obra, considerada a maior escritora judia desde Franz Kafka – Clarice Lispector. Ela declarava-se brasileira e pernambucana.
Tudo começou há cem anos.
Em uma cidadezinha muito distante – Chechelnyk, na Ucrânia, território do Império Russo, nasceu a menininha Chaya Pinkhasovna Lispector, no dia 10 de dezembro de 1920.
Vejamos o que aconteceu.
A família Lispector era judia. E, como era uma época de caos, fome, guerra racial e perseguição religiosa aos judeus, durante a Guerra Civil Russa (1918 / 1921), a família dessa menininha teve de emigrar para sobreviver. Os pais, suas duas irmãs e ela, Chaya, ainda pequena, chegaram ao Brasil em março de 1922, em Maceió, onde permaneceram por um breve período, após estabeleceram-se em Recife, Pernambuco. Os nomes russos foram substituídos por nomes da onomástica da língua portuguesa. Assim, Chaya virou Clarice.
“Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da Língua Portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português”.
“... eu devorava os livros! Eu pensava, olha que coisa! Eu pensava que livro é como árvore, como bicho: coisa que nasce! Não descobria que era um autor! Lá pelas tantas, eu descobri que era um autor. Aí disse: Eu também quero”.
Aos sete anos, descobre-se escritora, escreveu o primeiro conto. Aos oito, perdeu a mãe. Aos quatorze, a família mudou-se para o Rio de Janeiro, então capital federal. Prosseguiu nos estudos, com grande incentivo do pai, e cursou a Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, mas sua vocação era direcionada às redações dos jornais cariocas.
Aos dezenove anos, publicou o primeiro conto, “O Triunfo”, e, já no primeiro parágrafo, arrebata o leitor pela experiência sensorial: “O relógio bate 9 horas. Uma pancada alta, sonora, seguida de uma badalada suave, um eco. Depois, o silêncio. A clara mancha de sol se estende aos poucos pela relva do jardim. Vem subindo pelo muro vermelho da casa, fazendo brilhar a trepadeira em mil luzes de orvalho. Encontra uma abertura, a janela. Penetra. E apodera-se de repente do aposento, burlando a vigilância da cortina leve”.
Agora, com os sentidos aguçados pelas palavras de Clarice, atravessemos uma ponte, nesta história, porque, do outro lado, a escritora nos aguarda, para nos impactar ainda mais, e será uma verdadeira epifania.
Bem, onde estávamos? Ah, sim, no Rio de Janeiro. Formou-se em Direito em 1943. Foi redatora da Agência Nacional. Jornalista do Jornal “A Noite”. Casou-se neste mesmo ano com um diplomata, Maury Gurgel Valente, com quem viveria 16 anos fora do Brasil. O casal teve dois filhos. Clarice nunca cortou as raízes, vinha sempre que possível ao Brasil. Seu romance de estreia intitulado “Perto do Coração Selvagem” (capa ilustrada por Henri Matisse na edição francesa) continua a atrair novas gerações de leitores. Nele, a pessoa e a escritora Clarice se fundem numa complexidade interior, e começa a trajetória introspectiva, ou, segundo ela, uma “autobiografia não planejada”, o enfoque no “eu”, que se funde aos personagens.
Obra de estreia editada na França, com capa ilustrada por Henri Matisse
Em 1956 seguiram-se as publicações de “A maçã no escuro “ – “Laços de família” – “A legião estrangeira” – “A Paixão Segundo G.H.” – (este considerado um marco na literatura brasileira). Em 1960, separou-se do marido e voltou a morar no Rio de Janeiro, com os filhos. Sua carreira literária prosseguiu também com contos infantis, uma obra extensa abrangendo romances, ensaios, contos, crônicas e histórias de amor, contos feministas e abordagens sobre o próprio ser e a linguagem.
O último romance de Clarice, “A Hora da Estrela”, é a cara do Brasil, com questões filosóficas e existenciais, publicado pouco antes de sua morte, foi levado ao cinema em 1985.
Há tanto mais a dizer sobre Clarice Lispector. Muitos títulos não foram elencados aqui, nem premiações, entrevistas, suas leituras, em toda a sua vida, em que percorreu longos e acidentados caminhos. Coisas novas surgiram, mudaram e desapareceram.
A Internet nos oferece, hoje, tudo o que possamos imaginar sobre Clarice, até seus suspiros e silêncios. Em louvor a ela, há biografias, peças teatrais, traduções de seus livros em várias línguas. Clarice inovou na ficção. Tem renome internacional. Portanto, recomendo tudo o que a ela se refere, especialmente a biografia da autoria de Benjamin Moser: CLARICE, UMA BIOGRAFIA.
Porém, não finda aqui a história. Apenas chegamos ao final da travessia da ponte. Um passo. Estamos em terra firme. Ei-la. A epifania prometida. A “minha” Clarice.
Ainda hoje, depois de décadas, eu era bem jovenzinha, guardo a imagem dela em mim, quando a vi, pela primeira vez, na televisão, uma esfinge de olhos oblíquos, delineador no olho, saia rodada, salto alto e um colar de pérolas, estantes de livros atrás de sua mesa e a máquina de escrever, falando pausadamente, com a língua “prrrresa”. Me impressionei. (Ah, Clarice!)
Não me tornei escritora, mas bem que desejei, naquele momento, ser como ela, quando crescesse. Perdoem o clichê. Meu primeiro contato com a obra foi quando iniciei a Faculdade de Letras. Desde então, li a maioria dos livros de Clarice.
Confesso que, ainda hoje, nem sempre a entendo. Precisamos lê-la sem pressa. Admiro a capacidade dela no uso das metáforas, o fluxo de pensamento e os roteiros que desobedecem a uma sequência factual. Mais que os romances, amo os seus contos. Ela escreve de uma forma intimista, profunda, me sinto provocada. E suas personagens têm vidas tão, tão comuns, mas com questionamentos, sentimentos e sensações como nós, comuns leitores.
“Minha” Clarice é muito humana, eu a desvendo nas crônicas em que ela fala do cotidiano, das empregadas, dos amigos, das cartas que recebe, é dona de casa, mãe, deixou o marido diplomata para que os filhos não trocassem tanto de colégios, em países diferentes, e, desta forma, tivessem amigos.
Clarice Lispector na versão criada pela escultora caxiense Fabíola Dy Cornuthi (Foto: Marília Frosi Galvão)
Escrevia com a máquina no colo para ficar perto dos filhos. Escreveu livros infantis para eles. Era muito maternal. E misteriosa, supersticiosa. Gostava de ir a cartomantes. Era atormentada pela ideia de morte. Defendeu a liberdade e a igualdade das mulheres. Glamourosa. Inteligente. Bela. Elegante. Inovadora na escrita. Surpreendente. Culta. Densa. Impactante...
Pois, ao longo da vida, ler Clarice Lispector me fez refletir sobre o meu ser e estar no mundo, o que quero, para onde vou e quem eu sou. Me instigou nas questões comuns a todos nós sobre a vida, a morte, o tempo. Não me deu respostas, me fez indagar, mergulhar em minhas profundezas, me desacomodou. Ela mesma afirmou que não escrevia para agradar, mas para se sentir viva.
“Cuidado com Clarice” advertiu o amigo Otto Lara Rezende, a uma de suas leitoras, décadas atrás: “Não faz literatura, faz bruxaria”.
Nesse contexto, importa destacar o que foi afirmado no início dessa história: não é um conto de fadas, mas podemos estabelecer uma conexão entre literatura e feitiçaria. Feitiçaria com palavras. Clarice me induziu a mergulhar nas águas profundas de meu espírito, meu inconsciente, meus dramas, meus tédios, minha condição de mulher, meu envelhecimento, minhas incertezas e inseguranças.
Constatemos por que ela estava predestinada a brilhar como uma estrela em nossas vidas:
“Vivo no quase, no nunca e no sempre. Quase vivo, quase morro. Quase podia me jogar da janela de meu sétimo andar. Mas não me lanço. Quase adivinho as coisas. Sei muito. E quase não sei. Já estive três dias à beira da morte. E dela guardo a mão direita deformada. É um quase. Mas vou operar em breve porque quase pode degenerar em câncer. E como nasci? Por um quase. Podia ser outra, podia ter nascido homem. Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu nos jornais do que os elogios. Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou o quê? Um quase tudo.”
Quase ... Clarice Lispector teria falecido no dia em que completaria 57 anos. Foi um dia antes, 9 de dezembro de 1977.
Clarice Lispector faria cem anos no dia de hoje – 10 de dezembro de 2020.
E assim,
Foi uma vez ...
... essa história,
que não é um conto de fadas, e ninguém viveu feliz para sempre, mas é o conto de uma estrela-fada-feiticeira-das-palavras-escritora-Clarice Lispector, que cintilará eternamente no coração dos leitores.
Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista
galvao.marilia@hotmail.com
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