Por Marilia Frosi Galvão
Meu coração bate forte. Por onde começar? Ora, pelo começo... que pode ser o durante... ou um recorte... uma fatia do bolo de 131 anos da aniversariante Caxias do Sul.
A cidade sopra as velas neste junho de 2021... e as reticências... são para que as amáveis leitoras, e leitores, completem com a imaginação o que não revelo (o impreciso e o misterioso no tempo/espaço - década de 1970) no centro de Caxias. Não fecho portas. E deixo janelas abertas. Pois. Amo Caxias. Aqui nasci, me construí. Nossas histórias estão entrecruzadas. Me orgulho disso. Além do mais, sou fiel às minhas raízes - meus avós, vindos da Itália, aqui se estabeleceram...
Na vertigem dos anos 70...
... casei, morei a meia quadra da Praça Dante, encontrei maneiras de me colocar em uma nova vida, vivi os momentos históricos da época, me formei na faculdade, iniciei uma carreira no magistério, concebi dois filhos – Alexandre e Fabiana. Meus 20 anos renderam. Por isso, me atiro naquela década.
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No entardecer gelado de um 22 de julho daquela década... com alguns flocos de neve pairando no ar, subi as escadarias da Catedral... O céu cinza não me perturbou. No vestido simples de veludo e chapéu com algumas flores, estava mais para uma menina na primeira comunhão do que para uma noiva glamourosa e sensual dos dias de hoje. Do casamento civil para a Catedral, para o Clube Juvenil, para a lua-de-mel...
A Catedral: palco para o casamento em um típico julho gelado
A nova casa, a nova vida...
...no apartamento do terceiro andar, os anos de novas aventuras. Delícia de lugar. Sui generis. Vintage. A sala de jantar era o centro da circulação. Rodeada de portas para: a cozinha, o banheiro, o quarto do casal e para outra sala (salinha) essa de estar, com sofá e sacada com vista para a Av. Júlio de Castilhos, frente sul.
Adentrava-se nesse aconchegante apê por uma grande porta envidraçada em duas folhas, por um hall que mais parecia uma sala, pois havia uma cômoda, poltrona e tapete. A porta não era fechada a chave durante o dia. Nem se pensava em invasões. À noite, dois tampos internos escondiam os vidros coloridos, que durante o dia deixavam a luz do sol iluminar, aquecer, poetizar o ambiente.
A cozinha pequenina comportava o essencial, armários superiores, geladeira, fogão, pia e uma mesinha com tampo de azulejos (uma gracinha) e quatro banquinhos. O banheiro também era mínimo, parece que foi feito somente para abrigar aquela banheira de louça branca, com pezinhos.
O quarto do casal, grande, com duas janelas para a Júlio, abrigava cama, armários e penteadeira. E uma televisão em preto e branco. A chamada salinha era a sala da bagunça, onde os amigos se reuniam sentados onde fosse possível, com almofadas no chão. Área de serviço? Não havia, não. Nem espaço para uma máquina de lavar roupas. A cobertura do prédio supria essa falta, uma área enorme, com um tanque e arames (sim, arames) para estender a roupa, e vento. Muitos ventos. Alguns uivantes.
Pois, foi num dia em que o céu escureceu ameaçadoramente, o casal (nós) subiu ao terraço para recolher lençóis, toalhas e outras peças, que nossos apelidos “o pombinho” e “a pombinha” foram oficializados. Dinorah, a filha adotiva e cuidadora de D. Quitéria Almeida, senhora portuguesa, proprietária do condomínio, riu-se muito daquela situação. A ela pareceu muito engraçado, pois o pombinho corria para um lado e a pombinha para o outro. Resumindo, José Afonso passou a ser o pombinho e Marilia a pombinha, segundo ela, desse dia em diante. O pior (ou o melhor) é que ela contava esse episódio a quem quisesse ouvir, e acrescentava detalhes conforme o humor. Dinorah era puro amor. Via-nos como crianças atrapalhadas.
Naqueles anos setenta, morar naquele local era um privilégio. No meio da quadra da Avenida Júlio de Castilhos (1891) entre as ruas Visconde de Pelotas e Dr. Montaury: Nova arquitetura dos anos cinquenta, quando foi construído. Ares modernos, três andares acima do térreo, fachada de pastilhas coloridas, pequenas sacadas e janelas com venezianas, conservado até os dias de hoje. A vida estava no simples. Nos arredores da praça, e nesta quadra, especialmente, todos eram simpáticos. As pessoas se conheciam. Éramos amigos, e nos importávamos uns com os outros. Famílias tradicionais de Caxias eram vizinhas – Beretta, Parolini, Pezzi, Martinato... Do outro lado da rua estava a casa das tias Braghirolli, das Famílias – Geremia, D’Arrigo, o Sr. Henriquinho Saldanha, lembro dele na porta da icônica Livraria Saldanha.
O saudoso endereço no 1891 da Avenida Júlio...
A Avenida Júlio sempre encantadora com paralelepípedos e canteiros centrais. As árvores eram os ligustros, podados de forma arredondada. Muito bonitos. Na época, nunca se ouviu que alguém sofresse alergias por causa deles. A praça, então nomeada Rui Barbosa, também ostentava essa espécie de árvores, sombra aconchegante para quem descansava naqueles bancos de concreto. Das rosas da crônica de Rachel de Queiroz, restaram poucas... outras flores, de todas as cores, nos canteiros, com cerquinhas para protegê-las. Perfume no ar. A vida era calma e doce.
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Ah... os cinemas! Revezávamos para ver todos os filmes em cartaz, O Cine Guarani, o Cinema Central, o Cine Imperial e o Cine-Teatro Ópera... a menos de cem metros de nossa casa. Havia vida no centro. O centro pulsava. Era onde tudo acontecia. Festas, comícios, desfiles. Milhares de pessoas vinham ao centro nos finais de semana. Lojas iluminadas. Sorveterias. Pipoqueiros. Clube Juvenil e Juventude. Bailes. Casamentos. Festas.
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Essa conexão com o passado me traz tantas lembranças. Hoje, ao olhar com distanciamento, reflito e tento entender o que éramos, com o que sonhávamos. Não nos preocupávamos com o futuro.
Como a vida é uma incógnita, não sabíamos que não poderíamos controlar tudo, não tínhamos consciência da impermanência. Essas memórias me alimentam hoje. Os três lances de escadas. O terraço. Os rumores da rua. A voz da D. Quitéria. Os risinhos da Dinorah ao se referir ao pombinho e à pombinha. Os sons da madrugada. O apartamento. Os móveis. Os objetos. As comidinhas inventadas. O barulho da chuva no telhado. A sala de jantar. O espelho sobre o balcão. O quarto com os móveis brancos. A cortina da salinha esvoaçando. O corso alegórico da Festa da Uva na Júlio. A tevê em cores lançada na Festa da Uva de 1972... O chafariz reformado. A árvore de Natal dentro dele na praça. A música no toca-discos. Bolachões de vinil. Não havia internet, nem celular. Jantares com os amigos. Brincávamos de adivinhações, representadas por mímica – títulos de filmes, livros. Era afeto puro, carinho, olho no olho e risadas. Ah, éramos felizes.
Creio ter sido tendenciosa em meus relatos de antanho. Foi como um desaguar essa reelaboração de minhas lembranças. Admito que a memória tenha falhas, lacunas, não seja confiável. Talvez tenha exagerado no glamour do que foi bom. Ou não. Retratei o subjetivo, o vivido, o lembrado, não o pesquisado. Todos temos memórias diferentes.
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Caxias é uma cidade que contém muitas outras. E também é uma. Tem um pouco, ou muito das cidades apresentadas por Italo Calvino na obra literária “Cidades Invisíveis”. É bacana lembrar o conselho (na pág. 44 ) de Marco Polo ao poderoso Kublai Khan: “ De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas”.
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...é um tiro no coração constatar as perdas... tantas lindas e históricas construções sumidas pela sanha imobiliária... a discriminação social, a perda de identidade, a falta de delicadeza, enfim... são outras histórias, mas amo Caxias, minha cidade, ainda assim. Há muitos aspectos bons, é o meu lar.
O Edifício Dona Quitéria ainda ali está. Imagino que... se esse tempo... nesse espaço, vivido ali, fosse um filme... No final, a câmera focaria o pombinho e a pombinha, segundo a Dinorah, na porta do prédio, daria um close na barriga de grávida da pombinha, acompanharia o casal em seus passos pela calçada para novos rumos, novos voos...
O Edifício Dona Quitéria, onde os pombinhos esvoaçavam seus primeiros voos
...e então, para um gran finale... a câmera se afastaria e se elevaria para o céu, focando uma revoada dos pombos da Praça Dante ao som da música – Imagine – de John Lennon...
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista.
Fotos de Marilia Frosi Galvão