Caxias do Sul 23/11/2024

A “clausura” doméstica que alimenta o diário do escritor Tiago S. Marcon

As aparentemente prosaicas tarefas do cotidiano se revestem de significados e sensações especiais nesses dias de coronavírus
Produzido por T. S. Marcon, 03/04/2020 às 14:49:31
A “clausura” doméstica que alimenta o diário do escritor Tiago S. Marcon
Foto: FOTOS TIAGO SOZO MARCON

DIÁRIO DO ISOLAMENTO

POR T. S. MARCON

TERÇA, 24 DE MARÇO, SÉTIMO DIA

Nossos mantimentos diminuíram assustadoramente.

Foi preciso ir cedo às compras. Outro mundo existe, a partir da porta de saída do apartamento. Tudo representa risco. Desci pelas escadas, acionando as maçanetas com o cotovelo, os pés a auxiliar o processo.

Nesses pequenos vislumbres do mundo externo se dá a interação social desses dias pandêmicos. Pangaré sonolento, o carro quase não deu a partida. A bateria exprimiu um fôlego sofrido, mas a ignição aconteceu, e o motor ganhou suas pequenas explosões dentro dos cilindros. Me senti como se tivesse 21 anos, quando comprei meu primeiro carro, um Kadett GS a álcool.

Tudo se revestia de uma hiper-realidade meio assustadora. Nas ruas, cada paralelepípedo era o pixel de um jogo de simulação fantástica. As copas das árvores tinham um verde mais intenso, como se fossem imagens saturadas no Photoshop. Álcool gel em mãos, entrei no mercado.

A mulher que pesava as frutas e legumes chamou minha atenção para o número de idosos fazendo compras. “São os que mais deveriam ficar em casa, e...”, disse enigmática, interrompendo a si mesma pra depois soltar um riso que, segundo minha interpretação, ficou entre o sádico e o verdadeiramente preocupado.

Ao retornar ao bunker, novo ritual. Além das mãos e do próprio corpo, é preciso lavar tudo: embalagens, frutas, sacolas plásticas. Uma delas escapou no soprar do vento, na sacada, quando me dediquei a atá-las no varal.

À noite, o presidente fez na TV um pronunciamento estarrecedor. Chamou a doença de gripezinha, resfriadinho; disse que, por ter um histórico de atleta, não precisaria se preocupar, entre outras falácias do gênero. Pensei no destino do Brasil, sempre a se arrastar entre o otimismo do “agora vai” e o azar histórico em si, materializado numa cena inédita: no meio da tempestade colossal e desconhecida, nosso líder é um timoneiro desse calibre.

QUARTA, 25 DE MARÇO, OITAVO DIA

Nada de chuva, ainda.

Quarta-feira era noite de futebol, no mundo de antes. Uma das pontes de convívio com meu pai, agora que se completam quase dois anos que não moramos mais juntos, eram os jogos do Internacional.

As partidas mais importantes assistíamos juntos no sofá, uma espécie de compensação, de minha parte, por ainda não ter levado meu velho pra conhecer o Beira-Rio depois da reforma que lhe deu aquela elegante cobertura contemporânea; ver de perto o Inter jogar de novo, mas agora no seu novo/velho estádio impressionante. Mas o vírus adiou tudo.

Com o novo modelo vigente no futebol mundial, é quase impossível conseguir ingressos pra bons jogos sem ser sócio do clube. Eu era, mas há uns dois anos, quando tive problemas financeiros, me desassociei do Internacional. Tudo isso resulta no medo de que as coisas demorem a voltar a ser como antes, que as aglomerações sejam por muito tempo perigosas aos idosos e eu não possa pagar essa dívida afetiva com ele.

A verdade é que hoje sinto falta de ver os jogos na TV com ele, embora meu pai conserve um hábito que em certos momentos me irrita: ao ouvir o jogo também pelo rádio, com fones, ele tem uma espécie de premonição do futuro constante. Coisa de 4 ou 5 segundos. É o delay, a diferença de tempo entre o que é visto no instante exato do acontecimento e o sinal da imagem da TV chegando em nossas casas, que demora esses segundos até ser captado, processado e enviado pelo sistema até os televisores.

O rádio tem vantagem por operar com um pacote mais leve, apenas o som a navegar na velocidade da luz, desde a narração do locutor – testemunha ocular – até a orelha do ouvinte. De forma que às vezes meu velho berrava de êxtase, ou lamentava o revés sofrido pelo time, ainda quando a bola estava rolando mansamente no meio campo.

Pra esquecer um pouco do vírus e de todas as preocupações derivadas, brincamos um pouco com o Zizek.

QUINTA-FEIRA, 26 DE MARÇO, NONO DIA

Limpar o ladrilho, levar o lixo, lavar a louça e os legumes: ó, leves loucuras lancinantes!

Na clausura do cotidiano se escondem iluminações desconhecidas, prazeres escassos. Por exemplo: ao me dedicar ao tratamento hidrotérmico de cerâmicas, metais e vidros num ambiente de tensão, lembro do meu tio José. “Lavar a louça”, dizia, quando morei no seu apartamento do bairro Tristeza, em Porto Alegre, “é uma excelente oportunidade pra repassarmos mentalmente algum conteúdo lido ou aprendido”.

Filosofar, em outras palavras. Prática desconhecida por nosso presidente – um homem de ação, é claro – e foi ótimo ler hoje que o discurso do cara não encontrou eco no prefeito ou noutras lideranças locais. Seguem as ordens de isolamento, a restrição de contatos sociais. Pela vida, nosso admirável mundo novo.

Quando a noite abraçou a cidade silenciosa, abri um vinho do meu tio e bebi com a Juliana. Depois fui até a sacada. Por trás da tela que protege o Zizek e nos mantém ainda mais prisioneiros, fotografei em velocidade lenta o céu, e o feixe de luz dos poucos carros que cruzavam a rua lá embaixo, cada um levando sua angústia de volta pra casa.

Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal

E-mail: tsozomarcon@gmail.com