DIÁRIO DO ISOLAMENTO
T. S. Marcon
Domingo, 5 de abril,
Décimo-nono dia
Finalmente choveu de verdade.
Às 5 e 44 da manhã acordei com o rumor da chuva generosa, que reverberava nos telhados e descia sem medo, batucando em ritmo pelos tubos de PVC – como numa introdução de piano – enquanto o vento se infiltrava, em assobios, pelas microaberturas das esquadrias de alumínio. Foi quando coloquei nossos vasinhos de plantas na janela. O pé de sálvia parecia ansioso por uma hidratação.
As pessoas que não gostam dos dias cinzentos e chuvosos são, em geral, as que esbanjam água potável lavando suas calçadas de basalto regular, calçadas que muitas vezes impermeabilizam toda superfície de seus terrenos. São as que se esquecem da vida sob a torrente nervosa de seus chuveiros de metal importados, em banhos de vinte e cinco minutos. São as que acham a conta da água um absurdo, mesmo gastando o dobro em lojas de 1,99.
Tenho medo da desertificação da minha cidade, do meu estado, do meu país. Do meu mundo. Tenho medo de pessoas que sempre têm razão, e te pegam pelo braço para expor suas teses absurdas, áridas e egoístas, te enchendo a face de perdigotos.
Os 5 grandes medos da humanidade a partir de agora: colapso do clima pela deterioração da biosfera, choque de um asteróide com o planeta, guerra nuclear entre superpotências, atentado terrorista aleatório, cuspe na cara.
Segunda-feira,
6 de abril, vigésimo dia
Escrevo pro Manco, velho amigo do Pio X, que depois de deixar o bairro se formou em Biologia e foi morar em Floripa.
“E aí, meu, td certo?”
“Fala, Titi”
“Cara, me diz uma coisa: o vírus pode ser considerado um ser vivo?”
“Os vírus podem não ser considerados seres vivos por não possuírem constituição celular (nem metabolismo próprio - inclusive capacidade de reprodução) e não terem DNA e RNA simultaneamente”
“Bah, mas eles não têm nenhuma espécie de cognição? Como sabem o q fazer qdo invadem um corpo, depois uma célula?”
“Nenhuma. É mecânico. As proteínas de sua superfície reconhecem as proteínas de membrana de células alvo e aí entram”
“Bah, q loco. Uma porrinha dessas parando o planeta. Valeu, velhinho. Só queria esclarecer um pouco isso, pra depois alimentar as divagações que surgirão qdo eu escrever”
“Replicantes é um bom termo pra vírus”
Não sei definir se prefiro que o vírus seja considerado um ser vivo, ou não.
Terça-feira, 7 de abril,
Vigésimo-primeiro dia
Na escala de trabalho do meu novo setor da prefeitura (na verdade isso está acontecendo em toda a administração), subimos progressivamente para dois dias por semana de trabalho presencial. Fiquei com as quartas e sextas. Mas como ainda estou fiscalizando a execução de três obras, quase sempre acontece de eu ter de ir a alguma delas em dias que não são de trabalho presencial, até porque a obra tem seus ritmos e andamentos próprios. É o que acontece hoje.
Eu já previa isso, por isso deixei na garagem o capacete e as botas. A chuva durou pouco; é difícil vencer a concorrência com uma estrela tão forte como o sol, de forma que o calor já dá seus sinais nas superfícies da cidade: pedra de basalto, telhados de barro ou metálicos, nesgas de grama, folhas secas, o asfalto. Ganhamos máscaras da prefeitura. Pela rua, vou com a minha: um modelo azul, de válvula respiradora (não sei se é exatamente esse o termo), com uma presilha em borracha muito eficiente. Em duas quadras, já estou suando pela boca, e com dor até no cabelo. Tenho a cabeça grande, como meu avô.
Na obra, os choros de praxe do empreiteiro: a metragem prevista no projeto está errada, é insuficiente, o preço dos insumos subiu muito nos últimos meses, ainda mais agora na pandemia, está difícil conseguir mão de obra qualificada etc. Mas não posso reclamar muito. São profissionais interessados em executar bem a obra, fazem muitas perguntas, sugerem soluções baseadas em suas experiências. Não se trata de uma empresa aberta ontem.
Durante a vistoria, uma cena captura minha atenção para além dos critérios técnicos construtivos. No antigo banheiro, toda a cerâmica foi retirada. Restaram a parede cinza e áspera, como a pele de um animal eriçado, e um vaso sanitário com sua caixa acoplada, aquelas de modelo antigo, suspensas, acionadas por uma cordinha, a ser usado pelos funcionários da obra. Por quantos banheiros precários assim já passei, chorando nalguma casa estranha da infância, ou bêbado a vomitar na adolescência? “O banheiro é a igreja de todos os bêbados”, cantava Cazuza. A solitude daquele velho objeto hidrossanitário esquecido, quase o exílio de um refugiado de guerra (da guerra contra a precarização que parece engolir o mundo), uma peça à margem do protagonismo de outros espaços, tudo me atira num vórtice de identificação imediata.
Quarta-feira, 8 de abril,
Vigésimo-segundo dia
Na prefeitura, mergulho no universo abstrato das planilhas de excel, e só ressurjo à fala em duas oportunidades: no almoço, esquentando a marmita no microondas, para logo deglutir tudo sob a luz de fluorescentes presas no forro mineral em placas, solitário entre as paredes divisórias de revestimento melamínico, rodeado pelo mobiliário de escritório asséptico da sala de reuniões sem janelas. Depois, só volto à vida comunicativa na hora de ir embora. Mas foi bom.
À noite, um discurso soft do presidente na TV, sem nenhuma ofensa direta ou algum surrealismo grotesco, o que parece uma surpresa anormal. Obviamente foi escrito por seu time de assessores estrategistas, que agora intuem a hora de certa diplomacia estratégica, num jogo exasperante de vai e vem enjoativo.
Panelas ecoam pelo país.
Quinta-feira, 9 de abril,
Vigésimo-terceiro dia
Hoje o presidente cometeu novos ataques à saúde pública e à democracia. Nosso pé de sálvia morreu.
Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal
E-mail: tsozomarcon@gmail.com
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