POR MARCOS FERNANDO KIRST E SILVANA TOAZZA
A tocha olímpica que representa o desafio de manter aceso o legado cultural, literário e ficcional do personagem Nanetto Pipetta, criado pelo frei Aquiles Bernardi em 1924, nas páginas do hoje extinto “Correio Riograndense”, segue sendo empunhada com maestria, orgulho e talento, nos dias de hoje, pelo escritor e jornalista caxiense Marcelino Carlos Dezen.
Tendo recentemente publicado dois livros que recolocam em ação o hilário personagem representativo de alguns aspectos cômicos da personalidade dos imigrantes italianos que migraram à Serra Gaúcha em busca da cucagna (fortuna), Dezen se dedica à causa do cultivo do patrimônio cultural intangível legado pelos imigrantes, por meio do exercício do talian, língua na qual redige suas obras.
Na entrevista a seguir, informativa e divertida, da mesma forma como seus textos, o escritor esmiuça seu processo criativo, revelando de onde surgem as ideias para compor as novas aventuras de Nanetto Pipetta, e revela a gestação de novidades para breve. Confira:
Qual sua atuação atual?
Jornalista aposentado, dedicado à agricultura, criação de peixes e apicultura. Nas horas vagas, continuo escrevendo.
Onde reside?
Numa propriedade rural da comunidade São João, Bairro Forqueta, em Caxias do Sul.
Qual a sua relação com a cultura da imigração italiana?
Sou de origem italiana, tanto por parte de mãe (Radaelli, família oriunda de Milão), como de pai (Dezen, originária de Maser, Treviso). Minha comunidade sempre foi formada por descendentes de italianos. Com isso, convivi numa cultura tipicamente italiana, ouvindo meus avós, pais, tios, amigos e vizinhos falando o talian, fazendo filós, organizando festas comunitárias, cantorias, jogos e outros entretenimentos próprios da cultura italiana, moldando em mim um italiano quase da gema.
Italiano "da gema", colhendo uvas nos parreirais de um dos irmãos
De que forma começou a escrever as histórias do Nanetto Pipetta?
O Correio Riograndense (CR) sempre teve uma página dedicada ao talian. E quando o saudoso Pedro Parenti iniciou a publicação do Ritorno de Nanetto Pipetta nas páginas no CR, no ano de 1999, fui incumbido de editar a página e fazer a revisão final, cujos textos eram acompanhados por frei Rovílio Costa, a coluna mestra da valorização da cultura italiana e do talian. Como mantínhamos contato constante, reclamei com o frei que autores que substituíram o Parenti depois de sua morte (2000) estavam desvirtuando e descaracterizando a figura original do Nanetto, levando-o para uma realidade inverossímil e perigosa. Então Rovílio me desafiou: “E por que você não começa a escrever histórias do Nanetto Pipetta?”. Aceitei o desafio e, em 19 de abril de 2006, iniciei a publicação dos meus textos, alternando-os nas páginas do CR com diversos outros autores, como Silvino Santin, Rafael Baldissera, Sérgio Ângelo Grando, Luiz Bavaresco e Eduardo Grígolo. Até o fechamento do CR como veículo impresso (em 2017), foram 159 textos de minha autoria. No total, a coluna El Ritorno de Nanetto Pipetta publicou 903 histórias. Por pouco não chegamos às mil!
Como resolveu transformá-los em dois livros (já publicados em 2020)?
Resolvi publicá-los em livros para que não se percam ao longo da história e não fiquem restritos apenas aos que assinavam o Correio Riograndense. “Braùre de Nanetto Pipetta” (vol. 1) reúne as 159 histórias publicadas no CR entre 2006 e 8/2/2017. Como eu tinha diversas histórias já escritas, na linha de espera para ilustrar as páginas do Correio Riograndense, e muitas ideias na cabeça, após o fechamento do jornal, continuei escrevendo, como uma espécie de obsessão e ‘inconformismo’ pelo fim desse veículo tradicional e tão amado, principalmente pelo povo simples do interior. Escrevi, escrevi e quando me dei conta já tinha textos suficientes para o 2º volume – o “La Cucagna de Nanetto Pipetta”, que reúne 100 histórias inéditas. Outro motivo que me fez optar pela publicação em livro é que muitas pessoas que dominam o talian têm dificuldade de utilizar os novos meios de comunicação e poucos têm acesso à internet, sem contar que o impresso é algo palpável, físico, seguro e acompanha as pessoas em qualquer lugar. E também porque fica para a posteridade.
E como foi a receptividade?
Mesmo impossibilitado de realizar diversos projetos de divulgação que tinha em mente por causa da pandemia, fiquei surpreso com o interesse das pessoas pelos livros. Enviei muitos exemplares para diversos Estados, como SP, MT, ES, PR, SC e RS. Amigos chegam a vir à minha casa para buscá-los. Espero que esse período terrível que estamos atravessando passe logo para poder organizar um trabalho de divulgação à altura. Não porque são as minhas obras, mas porque a cultura italiana o merece.
Você mergulhou nos escritores anteriores que deram vida ao personagem, como o frei Aquiles Bernardi e o Pedro Parenti?
O Nanetto de frei Aquiles eu o conhecia desde a infância. Ouvia suas aventuras e trapalhadas, contadas pelo meu avô José Dezen e também por minha mãe. Depois, tive contato direto com o livro nos tempos de seminário (Capuchinhos). Mas acompanhei todos os autores do Nanetto que participaram do “Ritorno”, a começar pelo Pedro Parenti, editando os textos de todos eles. E com a morte de frei Rovílio Costa em 2009, fiquei como responsável direto pelo controle e revisão dos textos de todos os autores. Porém, na construção das minhas histórias, procurei traçar um Nanetto mais próximo e familiar, fazendo-o interagir no meu dia a dia e no dos meus familiares e amigos. Tanto que estou presente em muitas das aventuras do Nanetto. Nem sempre ele é o personagem principal do texto, mas está sempre presente, ou como protagonista ou como bom e atento ouvinte e espectador. O meu Nanetto é como se fosse alguém da minha família, próximo, presente, confidente...
De onde vem a inspiração para essas crônicas bem-humoradas, mas com muitas metáforas das dificuldades dos imigrantes italianos em alcançar a “cucagna”?
Muitas das crônicas que escrevi ocorreram de verdade, comigo, com algum familiar, com amigos. Em algumas, o Nanetto é apenas um ouvinte ou personagem secundário, mas, na maioria delas, ele acaba assumindo como protagonista daquelas histórias hilárias. Outros textos nasceram de anedotas, fatos presenciados ou ouvidos, pequenos tópicos ou apenas de um apanhado de palavras que inspiraram a construção de um bom texto final. Confesso uma coisa: várias crônicas nasceram de ideias que surgiram na minha cabeça naqueles preciosos minutos que se fica na cama, antes de levantar pela manhã. Sempre deixei um bloco de anotações e caneta próximos da cama justamente para anotar um primeiro esboço do que eu desenvolveria posteriormente. Em muitos casos, o que nasce pequeno acaba ganhando uma conotação maior e dando fôlego não apenas para um texto, mas para uma sequência. Cito como exemplo os textos 33 a 35 do livro “La Cucagna de Nanetto”. Inicialmente, escrevi apenas um, mas ideias em torno do tema fizeram com que a história do roubo de melancias se desdobrasse em três.
Finalização da capa de um dos livros do Nanetto, na Editora São Miguel (Foto Elson Sausen)
E a busca pela cucagna...
Quanto às metáforas das dificuldades de alcançar a cucagna (o sucesso, a sorte), essa é uma característica marcante do personagem Nanetto Pipetta, que frei Aquiles percebeu em muitos daqueles primeiros descendentes de italianos com quem ele conviveu. A vida, para a maioria deles, nunca foi fácil. Teve de ser conquistada com muito suor, sacrifício, luta e sofrimento. O Nanetto do frei Aquiles incorpora magistralmente tudo isso. Continuei mantendo esses traços também no meu Nanetto, mas sem deixar que ele evolua ao longo do tempo, abra os olhos, se torne mais esperto e acabe, de alguma forma, encontrando a cucagna com que ele tanto sonha, que é o de ter seu pedaço de terra, sua casa, amigos, uma namorada, seus confortos... enfim, uma vida decente e com qualidade.
Vem o terceiro livro por aí. Como está o processo? Para quando podemos esperar seu lançamento?
O terceiro volume, que terá o título “I Ricordi de Nanetto Pipetta”, está pronto para ir ao forno. A obra conta com apresentação de ninguém menos que José Clemente Pozenato, escritor maior da Serra Gaúcha, e, mais uma vez, as ilustrações de Derli Dutra. O livro reúne 100 textos. Muitas das “recordações” do título são do Nanetto, claro, mas também minhas. Exemplo disso são os últimos dez capítulos, que destacam lembranças do meu tempo de seminário e que conto para um curioso Nanetto enquanto estamos fazendo um trabalho bem típico dos nossos colonos – carpindo uma pequena roça de feijão. Pretendo lançar a obra entre agosto e setembro próximos.
Você aprendeu a falar no dialeto italiano? Como é escrever em talian?
Talvez o correto seja dizer que sou autodidata em talian. Sempre tive um bom domínio da língua, falo bastante bem também o italiano oficial, mas, basicamente, procurei seguir da melhor forma possível as orientações que constam da Gramática do Talian, escrita pelo saudoso Darcy Loss Luzzatto, em parceria com outros experts na língua, como frei Rovílio Costa, Honório Tonial e Júlio Pozenatto. Graças a Deus, há um movimento em curso no sentido de “unificar” o talian, especialmente na escrita, e boas novidades virão por aí em breve. Tenho facilidade em escrever em talian, mas quando surgem dúvidas, o Dicionário Português Talian, de Luzzatto, é meu porto seguro. Muitas pessoas salientam que têm dificuldade na leitura, mas depois que ‘pegam’ o jeito, fica bem mais fácil.
E de onde vêm as artes que ilustram os livros?
As ilustrações são de Derli Dutra, de São José do Ouro. Preciso revelar um pequeno segredo: Derli conhece muito pouco do talian, mas, por um toque de mágica, ele interpreta tão bem os textos que as artes são praticamente perfeitas para cada tema. O verdadeiro segredo: faço para ele um pequeno resumo de cada texto e sugiro como desejo que ele faça o desenho. Pronto! Não é mais segredo.
Ser jornalista te ajuda no processo de simplificar o texto e transformá-lo em algo atrativo ao leitor?
Sem dúvida, o fato de ser jornalista é fundamental na construção do texto. Procuro transformá-los em crônicas e o cuidado na elaboração de cada história me leva a reescrever, revisar, tirar, acrescentar várias vezes. Porém, a prática e o fato de já ter escrito mais de 350 histórias facilitam a estruturação de cada texto. Escrevo sempre a caneta, num bloco. Parece que as palavras fluem mais fácil na ponta da caneta do que na ponta dos dedos no teclado do computador. Então, na hora de digitar cada texto, fica mais fácil fazer os retoques finais.
O Nanetto é um misto de muitos descendentes de italianos. Por vezes, ele encarna o anti-herói. Talvez por isso haja tanta identificação com o público. Como avalia?
Originalmente, o Nanetto nasceu da arguta observação de frei Aquiles Bernardi quando ele se encontrava com o povo, nas comunidades do interior e, certamente, de muitas histórias que ele deve ter ouvido na sua comunidade de origem, lá pelas bandas de Ana Rech. O Nanetto ganhou essa definição de anti-herói que eu, pessoalmente, não concordo muito. Ele é, isso sim, um desastrado. Ele encarna aquelas pessoas que existem em praticamente todas as comunidades, empresas e regiões e que são o centro das atenções pelo que falam, fazem ou deixam de fazer. Espécie de bobos da corte. Mas Nanetto, de bobo, não tem nada. O que eu observo e procuro deixar saliente no personagem é que ele é o protótipo das pessoas (e todos conhecemos alguém assim) que “fazem” muitas coisas por impulso, para “pensar” depois. É evidente que quase sempre não dá certo! Essa característica é o que encanta os leitores.
Nos seus livros, você consegue inserir e homenagear muitos fatos rurais e pessoas de seu cotidiano e convívio e que dão veracidade à obra. De que forma elas recebem isso?
Em primeiro lugar, sempre me preocupei em tornar os textos do Nanetto verossímeis. Ele não é um personagem de ficção, um super-herói, mas alguém como qualquer um de nós, só mais desastrado. O fato de inserir pessoas do meu convívio, fatos do cotidiano rural, foi uma forma de perpetuar, em livro, histórias que eu vivi e que poderiam se perder ao longo do tempo. É engraçado isso, mas, de modo geral, as pessoas gostam de se ver retratadas nos meus textos. Mais ainda, tenho pelo menos quatro casos de pessoas que chegaram a me pedir para que escrevesse sobre um determinado fato engraçado que ocorreu com elas. Mas, acima de tudo, retrato pessoas do meu convívio como uma forma de homenageá-las, lembrá-las, reverenciá-las, até. Digo sempre: só incluo nas minhas crônicas pessoas que eu prezo e estimo. Graças a Deus, até agora ninguém reclamou.
As pescarias rendem muito. É uma prática que ainda encontra muito espaço no nosso interior?
Sem dúvida. O verdadeiro gringo não vive sem uma boa polenta e um peixe frito. Acredito que o gosto pelas pescarias é uma herança dos nossos antepassados, cuja sobrevivência muitas vezes se deu graças à fartura de peixes dos nossos rios e da caça. Sem contar que o peixe é um alimento saudável. Porém, o aspecto mais interessante de uma pescaria é o espírito de aventura que ela abarca. Ela pressupõe um acampamento, a liberdade em torno de um belo rio ou lago, o desafio de quem consegue mais êxito com o anzol e, acima de tudo, a confraternização em torno do fogo, da mesa, da frigideira cheirosa, do tacho de polenta fumegante, tudo regado a bom vinho e muitas, muitas histórias pra contar, principalmente daquele peixe “enorme” que acabou escapando na hora H. Só quem participou (participa) de uma pescaria sabe o que isso significa para o corpo e para o espírito.
Pescaria em um dos açudes em casa, junto ao sobrinho, Ismael Dezen (D) (Foto: Isaac)
Manter viva a saga do Nanetto Pipetta é ajudar a preservar um personagem icônico de nossa cultura. Isso o motiva a continuar?
Você diz bem ao falar de “saga” do Nanetto. Sua ‘história’ é uma verdadeira saga, a saga de um herói às avessas, mas que reflete profundamente os sonhos, os desejos, os planos, a vida de cada imigrante que se lançou rumo ao desconhecido para concretizá-los aqui na Serra Gaúcha e, depois, em outras regiões do Sul, já que a pátria-mãe negou, a milhões de italianos, o mínimo necessário para uma vida digna. Monsenhor Scalabrini, o apóstolo dos imigrantes, dizia que a verdadeira pátria é o lugar que te dá o pão. Nanetto será sempre esse aventureiro em busca da sua verdadeira pátria, do necessário pão. Isso é, sem dúvida, uma grande motivação para continuar escrevendo sobre nosso ícone serrano. Tanto que um 4º volume já está em andamento. No prólogo do livro “Braùre de Nanetto Pipetta”, reforço que, apesar de o “berço” de Nanetto ter fechado as portas, isso não significa que ele se transforme em “túmulo”. Nanetto é imortal. E, se um dia ele morrer, então se perderá uma coisa que se chama cultura, herança, identidade, raiz. Perder esses valores é perder-se nas brumas do tempo.
Como define o Nanetto Pipetta?
Entre a diversas características do personagem, reforço o que, para mim é sagrado na construção das histórias do Nanetto: a simplicidade, a alegria, o respeito, a fé, a humildade, a santa curiosidade que o mete em frequentes trapalhadas e o seu agir por impulso, sem medir as consequências. Ele adora fazer desaforos e aprontar para os amigos, mas não abre mão de expressar o que sente, o que observa, apontar o que está errado, condenar as injustiças, não ter inveja do sucesso e das conquistas dos outros, aprender com os erros, aceitar as novidades. Isto é, o Nanetto expressa muito do que nós desejamos e almejamos. Frei Rovílio Costa resumiu bem tudo isso ao afirmar que “in ogni uno de noantri ghe ze sconto un Nanetto”, ou seja: dentro de cada um de nós há escondido um Nanetto. É o Nanetto que está em nós que nos leva a gostar do personagem das crônicas.
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