POR MARILIA FROSI GALVÃO
Calço os tênis mais velhos. Os confortáveis. Complementam meu look transgressor – roupas de academia. Sei. Não são para usar, a não ser na academia. Certo. Porém, as que visto são camisetas largas e compridas. Não quebro essa regra de elegância, portanto. Além do mais, por vezes, nosso corpo pede para sair de dentro de casa. Assim, saio com o intuito de perambular pelas ruas centrais de Caxias do Sul. Linda esta tarde! É sábado. Meu corpo (e coração), eu os entrego ao calor do sol. Ah, a luz dos primeiros dias de outono. Na rua! Na tarde! Que equação perfeita entre espaço e tempo!!
Vivo em Caxias desde que nasci. Eterna moradora do centro da cidade, desenvolvi um conhecimento para guiar meus passos por onde eu possa deparar com elementos que despertem em mim ondas de emoções. Quase sempre escolho a Avenida Júlio de Castilhos, porque ela a mim se desvela com um quê de nostalgia, porque é parte de mim naquilo que eu sou. Aprendi com ela a poesia da observação. Cresci com ela, e nossas fisionomias foram amadurecendo ao longo do tempo. Sim, as ruas têm fisionomia. Impossível não constatar que envelheci. Desde os sete anos meus pés percorreram as calçadas da Júlio. E hoje eu a vejo tão diferente e tão igual em sua essência. Como eu.
Então, inicio o percurso pela esquina da Rua Alfredo Chaves – perpendicular à Avenida. Sem pressa, com o olhar livre – liberto para pousar onde quiser. Como as borboletas. Meus passos pisam leves sobre a calçada listrada, em pedras brancas e rosadas. Diferencial da Júlio desde os anos 90. Fruteira. Lojas de roupas femininas. Cafés. Imobiliária. Salas comerciais. Farmácias. Bancos. Um deles parece-é imperativo: “Servidor. Traga seu salário e aproveite vantagens exclusivas”.
Elementos urbanos despertam ondas de emoções (Foto: Marilia Frosi Galvão)
Verde no semáforo. Para pedestres. Atravesso o cruzamento com a Rua Borges de Medeiros. Livraria Rossi (a mais antiga). Loja de calçados. De roupas. De tudo por R$ 10,00. Farmácias. Academia de Ginástica. Lanchonete. Escritórios. Banrisul. O Clube Juvenil na esquina, com magnífica arquitetura - clube social que abriga em si e na memória de milhares de pessoas as mais ternas lembranças de bailes e festas.
Corto a Rua Marquês do Herval. Sigo pela Avenida Júlio de Castilhos. A Praça Dante Alighieri, do outro lado da rua. Este trecho é o Centro Histórico de Caxias do Sul. Desde o Clube, passo pela casa da Família Scotti, na esquina, em cuja parte térrea funciona uma farmácia 24 horas. Outras farmácias. O ex-Cine Central, hoje abriga uma grande loja de utilidades, e os demais prédios históricos até a esquina, com lojas de roupas, supermercado, artigos domésticos. No centro desta quadra – o polêmico edifício apelidado de “Caixa de Fósforos”.
Sigo. Atravesso, com o rumo pela rua principal, pela Rua Dr. Montaury. Ah, nestes 100 metros a seguir, me vêm à mente algumas lembranças da minha vida desde a infância até a idade adulta... Algumas das casas antigas de famílias tradicionais de Caxias. Comércio de eletrodomésticos. Farmácias. Consultórios. Óticas. Padaria. Joalherias. Lojas de calçados. E, na esquina – o prédio da antiga Livraria Saldanha –, um dos ícones da arquitetura e história.
E assim, depois de passar por hospitais, lojas de artigos esportivos, malas e bolsas, consultórios, floriculturas, mais cafés, mais bancos e mais farmácias e... encurtando a narrativa, para que meu leitor não se canse de tanto andar - sigo pela rua principal, cortando as transversais: Rua Visconde de Pelotas – Rua Garibaldi – Rua Marechal Floriano – Rua Moreira César – Rua Coronel Flores – e - finalmente, na Rua Feijó Júnior – no Bairro São Pelegrino – faço uma pequena pausa antes de voltar. Sento em banco da pracinha que, vergonhosamente – não sabia o nome. Pergunto às moças da banca de revista ali ao lado?? Não.
Há na alma das ruas as luzes e as sombras (Foto: Marilia Frosi Galvão)
Retorno, fazendo o caminho inverso, com o sol às minhas costas. Tiro a malha e amarro-a na cintura. Sim, é uma delícia flanar – caminhar pelas ruas sem compromisso. Observar e bisbilhotar. Permitir que os pensamentos venham em fluxos – e tragam recordações... Constato o óbvio: ah, eu amo a rua. A rua é democrática. Generosa. Não rejeita ninguém. Nem o pobre, nem o rico. A rua tem os sons dos carros que passam, das buzinas, das vozes das pessoas, das risadas, choros, gritos dos vendedores, das músicas – dos discursos, do sino da Catedral, das rodas de conversa, do povo... ah, e os cheiros dos churros, das pipocas, cachorro-quente, de café, de pão quentinho...
É gostoso ir por aí. É preciso flanar. Nas ruas, quase tudo acontece. No regresso, observei tudo sob outro ponto de vista: do outro lado da rua. Constatei que a rua – percorrendo esse trecho da Júlio de Castilhos, é um fator de vida na cidade. Pulsante. Abriga o comércio, a riqueza, a pobreza, os moradores de rua, os vendedores de flores, de bilhetes, de lanches, os cães, os velhos, os operários, os travestis, as prostitutas, os pivetes, os camelôs. Enfim, uma abrangência de tipos e figuras. E a mim também, pois que sou parte desse povo que circula, que é passante, que vem e que vai livremente, e isto é universal (espero).
Gosto da palavra italiana “chiaroscuro” – há na alma das ruas as luzes e as sombras. Vemos o belo, o triste, a cor, as flores, os canteiros, os paralelepípedos (amo-os), as fachadas antigas preservadas. Paredes pichadas. Receptores de lixo fedidos e transbordados. A menina que toca xilofone na esquina. O palhaço na frente da loja. As árvores floridas, as outras, maltratadas, com podas drásticas. As janelas abertas. As tabuletas “Compro Ouro” – chamando mais atenção do que o nome da rua – colocado logo abaixo – quase invisível. O emaranhado de fios horroroso que enfeia a cidade. Algum ligustro, raro, para lembrar o tempo de meninice e das brincadeiras na praça, depois da missa. Chiaroscuro, capisce?
Se eu fosse uma cronista de verdade, poderia escrever muito, pois é preciso ter curiosidades, entender a psicologia da rua. Ela nos oferece uma miríade de detalhes. Aprendi esse fato com dois escritores: os dois eram flâneurs. Quer dizer, praticavam o ato de flanar pelas ruas. Vagabundearam “com sabedoria”. Viram o mínimo de forma grandiosa. Ao se meterem nos “rolos”, refletiram sobre o que os outros faziam. Posto que eram uns “metidos” em tudo! De dia. De noite. De madrugada. Na rua, no inusitado, no comum, ou no que ninguém vê, nas pessoas, no “bas fond” ou na alta sociedade, no efeito do ambiente, porém, especialmente na rua, encontraram a matéria prima para seus escritos.
Eles decifraram a alma das ruas:
Charles Baudelaire – Poeta “maldito” francês. Marco da poesia moderna e do simbolismo. Em 1857 publicou o livro “Les Fleurs du Mal” – “As Flores do Mal”, o qual foi violentamente atacado e recolhido por “insulto aos bons costumes”. Com a retirada de algumas partes, o livro veio a público. O autor, incompreendido, respondeu a processo judicial e endividado. Palmilhou como ninguém as ruas de Paris – morreu em 1867, aos 46 anos. Neste livro, escrito em versos, há um grupo de poemas, intitulado “Tableux Parisiens” – “Quadros Parisienses” – em que Baudelaire trata da cidade e das multidões. Para retratar o pôr do sol como um belo espetáculo – assim se expressa: “Aquela cor avermelhada formava um singular contraste com as montanhas, que eram azuis como a calça mais escura.” Sobre isto, Roberto Calasso, escritor e estudioso da obra de Baudelaire explica: “Somente um escritor – aquele escritor que viria a ser Baudelaire – podia se permitir associar um pôr de sol à cor de uma calça”.
João do Rio – João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Barreto. Jornalista. Cronista. Contista. Teatrólogo. Nasceu no Rio de Janeiro. Desde cedo teve inclinação para o jornalismo e literatura. Era um dândi que – com suas roupas chiques e diamante na gravata – foi também um verdadeiro flâneur. Com o olhar atento, traduziu as camadas sociais do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX em suas crônicas. Ele circulava tanto na alta sociedade carioca, e na política, quanto nas vielas lamacentas dos morros cariocas. No livro “A Alma Encantadora das Ruas”, deixou bem claro o seu olhar aprofundado. Morreu em 1921 aos 40 anos. Foi criticado e hostilizado por alguns escritores na época, mas deixou uma obra admirável e extensa e suas inspirações partiam das ruas.
O semáforo abriu. Os carros puseram-se em movimento. De volta à Alfredo. Chego à casa. Pesquiso o nome da pracinha aconchegante: Praça João Pessoa. Descalço os tênis dos meus pés cansados. Eles caminharam muito pelas ruas da cidade, em uma tarde de sábado. Como meus inspiradores, Baudelaire e João do Rio, em um espaço e tempo entrelaçados, penso ter “incorporado” em minh’alma “A alma das ruas”.
Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista.
A cronista flâneur, Marilia Frosi Galvão (Foto: Claudia Haupt)
galvao.marilia@hotmail.com
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