POR MARCOS FERNANDO KIRST
Assim que a informação se despiu da precariedade insegura do boato e assumiu sua condição de verdade tangível, transformando-se em notícia para em seguida ingressar na História, as multidões foram ocupando os espaços públicos em várias partes do mundo. A Quinta Avenida em Nova Iorque, a Trafalgar Square em Londres, a Champs-Élysées em Paris, a Praça Vermelha em Moscou (e seus similares de todos os portes e dimensões em cada cidade, vila e lugarejo), foram sendo invadidas por hordas de pessoas comuns e agindo como pano de fundo para acolher a indescritível alegria e o imensurável alívio que se apossava das almas de cada pessoa sobrevivente ao maior conflito bélico já produzido pela humanidade na História.
Trafalgar Square, em Londres, tomada pela multidão
Era o dia 8 de maio de 1945, e a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim no palco europeu há exatos 75 anos. A Alemanha nazista assinara sua rendição incondicional aos Exércitos Aliados naquela data, colocando um fim ao conflito que, após seis anos de batalhas, destruição, horrores e morticínios, deixaria um saldo de 60 milhões de mortos, a maioria deles, civis (estima-se 40 milhões de civis mortos). A data entraria para a História como o “Dia da Vitória na Europa”, ou o VE-Day (Victory in Europe Day).
Comemorava-se, ao redor do mundo, não só a alegria do fim dos horrores, mas, especialmente, o resultado dos esforços sobre-humanos empreendidos pelas nações que se uniram ao redor do mundo para combater e derrotar uma proposta de vida embasada em valores sombrios propugnados pelo nazismo alemão, pelo fascismo italiano e pelo imperialismo japonês, as três forças que se uniram para tentar subjugar o planeta à sua doutrina de ódio, de discriminação, de violência institucionalizada, de perseguição, de intolerância, de genocídio, de racismo, de homofobia, de desvalorização da vida humana.
A vitória aliada não foi conquistada apenas com as táticas e estratégias militares e pelas decisões acertadas dos grandes líderes e generais. Ela só foi possível devido à dedicação individual e pessoal de cada homem, mulher e mesmo criança que, tanto no front empunhando armas quanto em casa e no trabalho, empreenderam todos os minutos de seus dias e todos as energias de seus corpos para construir um esforço de guerra incomparável a qualquer outro evento coletivo já protagonizado pela humanidade antes e depois.
Parisienses e a Resistência Francesa celebram
No front, nos campos minados e regidos pela morte, cidadãos comuns tiveram de deixar suas atividades profissionais (professores, jardineiros, comerciantes, estudantes, pedreiros, agricultores, artistas...) para vestirem uniformes, capacetes e botas, empunharem fuzis e ofereceram a própria vida nos campos de batalha. Na retaguarda, médicos e enfermeiras, jornalistas, engenheiros, cozinheiros, industriais, operários e outros profissionais construíam as condições necessárias para que o front fosse suprido.
As mulheres assumiam os postos de trabalho deixados pelos maridos e filhos que partiam ao front, inclusive, nas fábricas de armamentos, construindo bombas, tanques, morteiros. Na condição de enfermeiras e médicas, ingressavam as companhias nas linhas de frente e salvavam vidas, arriscando as suas. Em alguns casos, chegavam a atuar ativamente dos batalhões de guerra, como soldadas, a exemplo da participação ativa feminina no Exército Vermelho.
Desde 1945, o VE-Day é celebrado com altas pompas e honrarias nos países que venceram a Segunda Guerra Mundial, em especial na Inglaterra, Estados Unidos, França e Rússia (ex-União Soviética). A presença dos veteranos de guerra nessas comemorações sempre é o ponto alto, pois, ao desfilarem orgulhosos com suas medalhas, seus uniformes de combate, muitas vezes em cadeiras de rodas, conduzidos por seus familiares, eles se expõem ali a uma catarse pública de admiração e agradecimento provenientes dos povos de todas as idades que vêm até eles para aplaudir e agradecer. Aplaudir e agradecer o esforço e a doação dessas pessoas anônimas e comuns que empenharam suas vidas, seu sangue, seu suor, suas lágrimas, no combate ao mal.
O mundo, obviamente, segue tendo problemas a serem resolvidos, diferenças a serem solucionadas, carências, discrepâncias, desigualdades, opressões, sim. Porém, o mundo que se conseguiu obter a partir da derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial, é infinitamente melhor do que aquilo que teríamos caso a vitória tivesse sido a dos propagadores do ódio. O fascismo, com todas as suas derivações e cores, precisa ser constantemente combatido, em todos os fronts, com todas as armas, sem concessões. Sempre. Essa é a mensagem deixada pelo VE-Day. Isso é o que se celebra nesse dia.
CURIOSIDADES
- A Alemanha nazista apresentou sua rendição incondicional por um triunvirato de generais que herdara o poder a partir do suicídio de Adolf Hitler no seu bunker em Berlim, em 30 de abril de 1945. O general Alfred Jodl, da Wermacht (Alto Comando das Forças Armadas Alemãs), o almirante Karl Dönitz (da Kriegsmarine, a Marinha Alemã) e o marechal de campo Wilhelm Keitel assinaram os documentos de rendição em atos diversos.
- O VE-Day é celebrado nos países integrantes da antiga União Soviética (em especial na Rússia) no dia 9 de maio, uma vez que, quando os documentos da rendição alemã foram assinados, já passava da meia-noite em Moscou, em função do fuso horário.
Festa do povo na Praça Vermelha, em Moscou
- A guerra continuou ainda por alguns meses no cenário do oceano Pacífico, com os norte-americanos combatendo as forças do Japão. A rendição japonesa só aconteceria no mês de agosto, depois das duas bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, respectivamente nos dias 6 e 9. A rendição oficial do Japão se deu em 15 de agosto de 1945, data celebrada como VJ-Day, ou “Dia da Vitória sobre o Japão”. Uma cerimônia oficial de rendição, com assinatura de documentos pelos representantes japoneses e norte-americanos, foi celebrada a bordo do navio de guerra americano USS Missouri, ancorado na Baía de Tóquio, no dia 2 de setembro de 1945, colocando fim oficial à Segunda Guerra Mundial (iniciada seis anos antes, em 1º de setembro de 1939, com a invasão da Polônia pela Alemanha).
- Quem recebeu a assinatura oficial da rendição do Japão, a bordo do USS Missouri, foi o general americano Douglas MacArthur. Na ocasião, em seu discurso, ele proferiu as hoje históricas frases: “Espero que esta cerimônia resulte num mundo melhor, nascido de um universo de sangue e violência. Um mundo baseado no diálogo e na concórdia, um mundo baseado na dignidade do Homem e nos princípios fundamentais da liberdade, da tolerância e da justiça.”
Rendição japonesa a bordo do USS Missouri
- Este ano, as comemorações do VE-Day, que usualmente arrastam multidões para os locais históricos na Europa, estão sendo celebradas com apenas as presenças de poucas autoridades, sem eventos que promovam aglomerações, devido às restrições impostas por outra guerra mundial: a batalha contra o coronavírus.
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