Caxias do Sul 21/11/2024

50 anos atrás, o sonho Beatle chegava ao fim

Mas o inesgotável forno de fermentar sonhos seguiu e segue ativo até hoje, passado meio século do fim da banda de rock mais famosa de planeta
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 10/04/2020 às 08:08:45
50 anos atrás, o sonho Beatle chegava ao fim
Foto: Reprodução/Divulgação

Por Marcos Fernando Kirst

Foi 50 anos atrás hoje, 10 de abril, Paul McCartney disse que não iria mais tocar com a banda (qualquer semelhança com os versos de abertura da famosa faixa “It was 20 years ago today, Sgt. Pepper told the band to play” não é mera coincidência). Era 10 de abril de 1970 e as manchetes dos principais jornais ingleses traziam estampada na capa a notícia que se transformaria na concretização da “tragédia” (para os beatlemaníacos, indiscutível) que já vinha sendo anunciada nos últimos anos: os Beatles haviam acabado. Ou melhor: Paul McCartney havia deixado a banda e, por consequência...

Mas a coisa não foi assim, direta, oficial e simples, como à primeira vista pode parecer (nada do que envolve os Beatles e sua trajetória é simples). As tensões entre os quatro membros da banda vinham numa espiral crescente e insustentável já há anos e não eram do desconhecimento do público, que, a bem da verdade, já antevia o desfecho para algum momento. Mas o pior, quando acontece, mesmo quando esperado, sempre se afigura ainda pior. E os Beatles, em 10 de abril de 1970, se dissolviam irremediavelmente, com a entrevista coletiva que Paul McCartney convocara para anunciar o lançamento de seu primeiro álbum solo, intitulado, ora, vejam só, “McCartney”, que viria a público dali a uma semana.

Um álbum contendo 13 canções, todas compostas por ele, nas quais Paul executa todos os instrumentos sozinho, mostrando não só seu virtuosismo e sua versatilidade como instrumentista quanto, talvez mais do que isso, passando o recado de que não precisava de nenhum dos outros (agora) ex-parceiros para nada. Poucas das 13 músicas desse ansioso álbum de estreia sobreviveram ao tempo e passaram a integrar o set list perene de Paul McCartney. Entre elas, as pérolas “Every Night”, “Junk” e “Maybe I´m Amazed”.

Recado dado, recado entendido. Paul pegou de surpresa os três outros Beatles John Lennon, George Harrison e Ringo Starr, com o lançamento de seu disco naquela data, uma vez que haviam acertado, entre eles, que todos esperariam o lançamento do álbum “Let it Be”, que a banda havia gravado ainda no ano anterior (e então se configuraria como o derradeiro disco lançado pelo quarteto), em maio, para só então partirem para os projetos solo e a evaporação da banda. Mas Paul não quis saber, chutou o balde e amanheceu colocando seu disco na rua e avisando à imprensa, por meio de um release contendo uma “autoentrevista” na forma de perguntas e respostas, que não tinha mais planos de gravar junto com os Beatles, que não tinha a intenção de compor ao lado de John Lennon novamente e que estava deixando a banda.

A notícia no "Daily Mirror"

“Sacanagem”, pensou e vociferou John Lennon, ao ler a notícia, uma vez que ele próprio havia anunciado algumas semanas antes, entre quatro paredes, só para os parceiros, sua decisão de deixar os Beatles após o lançamento de “Let it Be”. “Eu criei esta banda, e eu a dissolverei”, teria dito. Só que Paul antecipou o lance e derrubou todas as peças do tabuleiro antes que os demais, fazendo o 10 de abril de 1970 entrar para a história como o dia oficial em que o sonho havia acabado.

PORÉM, O SONHO NÃO ACABOU

Mas se o tal do sonho tinha na composição fundamental de sua matéria (“Somos feitos da mesma matéria dos sonhos”, vaticinara, alguns séculos antes, outro inglês famoso, compositor de peças teatrais) a produção de música de primeira qualidade, ele, o sonho, não acabou com o fim da banda. Pelo contrário, a boa música seguiu (e segue) sendo gestada a partir do inesgotável talento criativo dos quatro rapazes de Liverpool, e o andamento daquele ano de 1970 deu uma amostra generosa do que o mundo pós-Beatles seria capaz de oferecer aos ouvidos insaciáveis dos fãs ao redor do planeta. Paul, John, Ringo e George colocaram mãos (e cordas, e teclas, e baquetas) à obra e apresentaram seus trabalhos solo, em uma enxurrada de música de primeira linha jamais vista antes na história do rock em tão curto espaço de tempo.

Ainda antes do “McCartney” de McCartney, o baterista Ringo Starr havia lançado, em 27 de março, seu primeiro disco solo, intitulado “Sentimental Journey”, repleto de canções antigas e populares inglesas, que faziam a cabeça de seus pais em Liverpool, na infância de Ringo. Sem trazer nenhuma composição original, apenas recheado de covers que já evocavam o vocal característico do baterista, o disco não incomodou a nenhum dos outros Beatles, tendo até recebido seu incentivo para que concretizasse o projeto. A capa do álbum foca a fachada do pub “The Empress in Dingle”, localizado próximo à casa em que Ringo nasceu, em Liverpool (e com cuja imagem deparei de surpresa de dentro de um ônibus de turismo na cidade, em 2015).

Depois do disco de Paul e do oficial dos Beatles “Let it Be” (lançado em 8 de maio), Ringo, faminto, volta às lojas emplacando mais um trabalho, agora fazendo remakes de famosas músicas no gênero blues, intitulado “Beaucoups of Blues”, em 25 de setembro. Mas quem matou a pau foi George Harrison, que desobstruiu as represas do coadjuvantismo a que era relegado nos Beatles e escancarou todo o seu talento (que já se conhecia com preciosidades da era Beatle como “Something”, “Here Comes the Sun”, “While My Guitar Gently Weeps” e tantas outras) em um disco triplo repleto de faixas maravilhosas, lançado em 27 de novembro.

A qualidade do álbum “All Things Must Pass” cresce eternamente à medida em que se vai retornando às audições e começa a ficar difícil elencar as faixas preferidas, entre as 23 contidas nos originais seis lados das antigas bolachas de vinil (na versão CD, o material foi compactado em duas unidades). Além da faixa-título, as paradas de sucesso foram contaminadas com a visceral “My Sweet Lord”, que rendeu louros e dores de cabeça a George (sofreu mais tarde um processo de plágio que lhe tirou do sério até o final de sua vida), trazendo também hits como “Wah-Wah”, “Isn´t It a Pitty”, “What is Life”, “If Not For You”, “Beware of Darkness”, “Awaiting on You All” e tantas outras. Era como se o guitarrista estivesse guardando o filé mignon para esse momento, em que se via enfim livre das amarras cerceadoras de seu talento na antiga banda, na qual o brilho era constantemente fatiado entre o choque de egos de John e Paul.

A última cereja do bolo (na verdade, uma torta flamejante repleta de cerejas) chega em 11 de dezembro, com o primeiro álbum solo de John Lennon pós-Beatles (descontados os três projetos instrumentais experimentais anteriores, criados entre 1968 e 1969 e compostos por gritos e sussurros produzidos por ele e Yoko Ono, que musicalmente serviram para nada), intitulado “John Lennon/Plastic Ono Band”. John fechava o ano legando ao mundo músicas imortais como “Mother”, “I Found Out”, “Working Class Hero”, “Isolation”, “Love”, “Look at Me” e “God”, na qual insere o hoje icônico verso “The Dream is Over”, imaginando acabar com o sonho.

Mas, como se viu e seguiremos vendo nos próximos textos aqui nesta seção do site, ele estava errado. O mundo seguiu sonhando, mesmo sem os Beatles, mas justamente por causa dos Beatles. “The End” é o título da última faixa do último disco dos Beatles. De fato, algo acabava ali. Mas não tudo.

Ouça aqui The End Beatles

Com seu famoso refrão “And in the end, the love you take is equal to the love you made” (“E no final, o amor que você leva é igual ao amor que você gerou”), os Beatles se despedem com a faixa que traz um solo de bateria de Ringo Starr e três solos revezados de guitarra feitos por Paul McCartney, George Harrison e John Lennon, nessa ordem. Uma despedida musical dos músicos aos seus fãs.

Abaixo, a legenda da foto na matéria em jornal brasileiro fazia futurologia e acertava na mosca, ao dizer que “Estes quatro rapazes não mais serão fotografados juntos”.